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Quais memórias suas roupas guardam?

Peças possuem valor afetivo e histórias para contar

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Naquele momento em que abrimos o armário para fazer uma “limpa” surgem diversas questões para elegermos as peças que daremos adeus. A partir de uma análise inicial sobre o estado do tecido, a estampa, o caimento, ou se há formas de customizar a peça, podemos partir para perguntas mais subjetivas que nos remetem à origem dela e às lembranças que nos traz: foi herdada da família? Usada em um show incrível ou quando conhecemos a pé aquela cidade linda?

Essas informações menos óbvias podem garantir um espacinho em nosso armário, só por conta do chamado valor afetivo – conceito cada vez mais valioso, em um mundo no qual a compra impulsiva e descartável tornou-se um ato cotidiano. O afeto que temos por uma peça só é possível por conta das memórias que emergem em momentos de reflexão sobre ela.

Roupas que testemunham uma época

A designer e historiadora de moda Michelle Kauffmann, por exemplo, é profissional em contar histórias sobre roupas usadas em épocas as quais não era tão fácil comprá-las, como hoje. Ela realiza um trabalho de contextualização de peças expostas em museus, antes pertencentes a grupos culturais específicos ou personalidades do passado. Para isso, analisa desde o ano de produção, a modelagem e o tecido da peça em questão, até singularidades como consertos e manchas, para reconstruir o passado de quem as vestiu.

Ela explica que, assim como as pessoas, as roupas também possuem uma identidade cultural, social e nacional, além de serem testemunhos de uma época. Um exemplo disso é a análise documentada por ela no artigo “A memória das roupas” – que escreveu para a Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem) – sobre o vestido da socialite dos anos 30, Aimée de Heeren (imagem abaixo), também lembrada por ter sido amante de Getúlio Vargas e amiga de Coco Chanel:

“O objeto tem sinais de uso, apesar de estar em ótima condição, e a bainha desfeita mostra um desejo da proprietária de atualizar a silhueta do vestido (…) Ela sabia que para atualizar sua peça antiquada bastava aumentar o comprimento da saia e recheá-la com anáguas. (…) Vale lembrar que nessa época as mulheres não contavam com ajuda profissional para se vestir, não havia personal stylist. As mulheres eram responsáveis pelo próprio visual e as mais bem-vestidas entendiam não só a teatralidade das roupas, mas consideravam-nas indispensáveis para a construção de suas identidades”.

A partir da leitura técnica e contextual da peça, a pesquisadora considera que esta torna-se ponto de partida para uma reflexão mais profunda. Por onde essa personagem andou? Quais festas frequentou? Como eram esses tempos? Qual o papel da mulher nessa sociedade? Segundo Michelle, perguntas como essas nos ajudam a resgatar a “aura” de peças antigas, sejam elas herdadas da família ou adquiridas em brechós, por exemplo.

O que há por trás do desapego de uma roupa?

Mas e quando as memórias necessitam ser recicladas ou simplesmente não há mais espaço no armário? Quem realiza um trabalho muito interessante de “facilitar desapegos” e ressignificar trocas é a mestre em Psicologia Social e consultora de estilo, Helena Soares. Ela organiza há sete anos, em Porto Alegre, um evento de troca de roupas, no qual os presentes sentam-se em roda e, após se apresentarem, contam a história por trás de cada peça trazida. Depois disso, as trocas acontecem, por meio de conversas mediadas por Helena.

Segundo ela, existem implicações psicológicas profundas no ato de “passar adiante” uma roupa. “Um casaco que remete a uma viagem feliz pode situar seu dono em uma relação com esse passado. O que significa hoje, para esta pessoa, a mesma viagem feliz? E o que é, atualmente, se desfazer desta peça, que simbolicamente representa um momento alegre de seu passado? Os conteúdos que se multiplicam nessas falas, sejam elas ditas ou não, são as produções dessa memória do vestir”, explica Helena.

Nosso guarda-roupas muda com a evolução natural da vida, e um indicador disso pode ser a escolha do conforto sobre a estética na hora de adquirir ou repassar peças. Helena comenta um exemplo vivido no encontro de trocas, que relata essa transformação: “Uma mulher desejava repassar um sapato de salto alto, pois já tinha uma idade mais avançada e desistiu de se equilibrar nele – por uma circunstância de vida e até mesmo de saúde. Este espaço de reflexão antes da troca despertou sentimentos que lembraram-na dos impasses que hoje vive”.

Vestindo significados

No âmbito da consultoria de estilo, Helena sugere que esse olhar sobre as emoções que certas roupas nos trazem pode render um exercício divertido para gerar novas combinações de looks: “Às vezes as peças produzem combinações entre si, porque uma memória se liga à outra. Esses diálogos também estão presentes no guarda-roupa. O afeto contido em uma blusa que lembra uma festividade, por exemplo, dialoga com a alegria de ter visto um pôr-do-sol em um lugar inspirador, com uma determinada calça”. E, assim, pode-se criar um look nunca antes usado, além de brincar de produzir novas e felizes memórias com ele. Vale a tentativa!

Para Mari Pelli, articuladora de um movimento que questiona o consumismo e o trabalho escravo na indústria têxtil e propõe soluções de engajamento, uma de suas saias representa um diálogo profundo com memórias sobre sua avó:

“Esta foi a primeira saia que costurei na vida e, além de ter sido a primeira, foi feita com um tecido que era da minha avó. Isso é muito legal porque hoje minha avó está um pouco doente, não costura mais e é como se eu estivesse dando continuidade a uma vontade dela. Foi um jeito muito bonito que encontrei de homenageá-la”, reflete Mari.

Já a consultora de comunicação em moda consciente, Carolina Landi, compartilhou que possui fotos usando a mesma roupa, com cinco ou mais anos de intervalo entre elas: “É claro que acaba se formando uma memória afetiva dessa indumentária. É o tipo de roupa que, comigo, vai para “descarte” somente quando o tecido acaba, rasga, mancha e realmente não tem mais conserto”.

Profissionalmente, Carol levanta informações sobre os impactos da indústria da moda, desenvolve relatórios sobre tendências positivas e oferece cursos para incentivar o pensamento socioambiental no mercado. Segundo a visão dela, uma boa relação com o que está no guarda-roupas deve incluir a consciência sobre a ética de elaboração dessas peças.

“Acho que, até mais do que a memória, o que me faz “apegar” a uma peça é a qualidade, no sentido completo da palavra. O que é qualidade pra mim? É o que me faz sentir bem. Para mim, o afeto também está ligado à consciência do comércio justo e da redução de danos ao meio ambiente”, finaliza Carol.

E você, tem quais histórias guardadas no armário?

Gabriela Machado André

Gabriela Machado André

Jornalista especializada em Comunicação e Educação Ambiental, é criadora do blog Roupartilhei e desenvolve conteúdos sobre moda, sustentabilidade e inovação. roupartilhei@gmail.com

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