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Gatos pretos e a crença de má sorte

Entenda como surgiu o preconceito atrelado aos felinos de cor escura

Atualizado em

Gatos pretos são animais com melanismo, isto é, com um excesso de pigmentação de cor escura (melanina) na pele ou nos pelos. São originários geneticamente dos gatos da raça Bambay e, como a maioria dos animais domesticados, estão bem adaptados à convivência com seres humanos. São carinhosos, curiosos, enigmáticos, companheiros, brincalhões e comunicativos.

Amados e rejeitados, os gatinhos pretos passaram de sagrados à demoníacos e ainda hoje enfrentam essa dicotomia em diversas culturas, incluindo o Brasil.  Nos gatos pretos ficaram depositadas muitas projeções negativas, mas também há lugares como na Birmânia e no Egito em que são considerados criaturas especiais e são, assim, protegidos pela sociedade como um todo.

Os gatos e os humanos: crenças defasadas

A relação entre humanos e gatos é antiga e data de aproximadamente 9.500 anos na ilha de Chipre, quase que simultaneamente ao surgimento da agricultura. Os alimentos se tornaram mais abundantes, mas com isso a população de roedores também cresceu. A aproximação se deu de forma espontânea, pois os gatos caçavam esses animais das plantações e os humanos não os importunava, coexistiam, assim, pacificamente.

Com o tempo e a maior interferência humana, os gatos passaram a ser selecionados por características específicas de modo a torná-los mais receptivos e amigáveis aos humanos. Desde o Antigo Egito, por volta de 5000 anos, observa-se uma relação muito mais estreita de convivência. Lá, os gatos eram considerados sagrados e a punição para quem os maltratasse era a morte. Eles eram tão respeitados, que ao morrer também passavam pelo processo de mumificação. A deusa Bastet, representada por uma mulher com cabeça de gato, era a deusa da fertilidade e da felicidade e era bastante reverenciada.

Início da caça aos gatos pretos

Durante muito tempo essa relação permaneceu amigável até chegar a Idade Média, século XI. Nesse período, se disseminou a nefasta associação entre os gatos e o mal, especialmente os pretos. E com a caça às bruxas, começou também a caça aos gatos pretos, fortalecendo as crenças e aumentando a repulsa em relação eles, interferência que sobrevive até hoje entre as pessoas menos esclarecidas. Eles eram vistos como as próprias bruxas metamorfoseadas ou então que estavam possuídos por espíritos malignos e por isso passaram a ser perseguidos.

O preconceito e a maldade que se vê ainda hoje contra esses animais mostra a força destrutiva de um boato que, em verdade, se originou da necessidade de se encontrar culpados para os problemas da sociedade. As bruxas e os gatos foram os escolhidos e sua destruição era amplamente divulgada e validada pela sociedade naquele tempo. Após esse período sombrio, houve um novo incentivo no convívio entre humanos e gatos apesar de as “fake news” da Idade das Trevas nunca terem sido totalmente superadas.

Gatos pretos: misticismo e inspiração

O misticismo em torno dos gatos pretos é fundamentado tanto em crenças do passado como também nas mais contemporâneas. Há quem os veja como canais para a espiritualidade, como condutores de espíritos ao mundo dos mortos ou até mesmo como os próprios espíritos reencarnados.

Bem frequentemente são considerados guardiões e protetores dos lugares e das pessoas com quem convivem. Para muitos, os gatos são uma conexão entre o mundo invisível e o mundo visível. Muitos acreditam que gatos podem enxergar outras dimensões, outros planos espirituais, fantasmas e espíritos.

Independente das crenças e superstições, a verdade é que os gatos são seres sencientes cujas vidas têm imenso valor para eles e o mínimo que podemos fazer é respeitá-los e não fazer-lhes mal.

Desde sua aproximação de nós, eles sempre nos inspiraram e fascinaram, a ver pela quantidade de obras artísticas da literatura, artes plásticas, música, cinema, fotografia e até mesmo estátuas para homenageá-los. O Gato-de-botas de Charles Perrault, O Gato Preto de Edgar Allan Poe, Negro Gato interpretada por Roberto Carlos, o Dueto dos Gatos de Rossini, A Mulher-Gato da DC Comics são exemplos do alcance que esses animais tiveram na criatividade e no imaginário humano. Precisamos ser agradecidos.

Enquanto símbolo, estão profundamente ligados à sensualidade, à elegância, à esperteza, ao furtivo, ao oculto.

Os gatos no Brasil da atualidade

No Brasil, a luta pela conscientização contra a superstição apresenta um grande problema, resultado da interferência humana na vivência desses animais e da extrema proximidade com eles, que é a superpopulação. Foi uma condição, aliás, criada por nós.

Pode observar: os animais selvagens, não se reproduzem descontroladamente. Há um controle populacional intrínseco, um equilíbrio natural que os animais que não perderam seus instintos são capazes de sustentar, especialmente em situações adversas. Já os animais que foram domesticados tornaram-se dependentes e reféns da boa vontade e da boa índole humanas.

As ONGs, abrigos, os protetores se esforçam muito, mas é um trabalho ingrato, pois os níveis de abandono e de pessoas que alimentam esses animais nas ruas sem cuidar do aspecto reprodutivo criam uma ambiente propício para que se multipliquem indefinidamente, tornando o trabalho preventivo quase que impossível, sem falar nos abandonos sejam pelo temperamento do animal, pela idade ou por doença, momentos em que mais precisam de cuidados.

Alguns animais conseguem socorro, são castrados e até mesmo encontram um lar, mas inúmeros outros não têm a mesma sorte. Nesse cenário os pretinhos ainda contam com o agravante de sua cor e de todas as projeções ultrapassadas que ainda vigoram em nossa sociedade, tornando-os os mais indesejados para adoção.

Notem que migramos de uma relação saudável, amigável e livre, para uma relação de dominação em que os deixamos à mercê de nossas decisões e nossos humores. Criamos uma profunda dependência emocional desses animais cuja companhia desejamos para aplacar necessidades nossas, sem considerar as deles.

Nesse novo modelo de relação que impusemos, eles compartilham sua fofura e presença conosco, mas o alto preço que pagam é que sem a nossa atuação eles estão totalmente vulneráveis, pois não só perderam suas conexões mais instintivas, como precisaram se adaptar à nossa artificialidade.

Hoje compartilham suas vidas conosco para terem segurança, alimento, cuidado e afeto, mas não podem ser livres, porque assim como há quem os ame legitimamente e se dedique a cuidar deles e protegê-los, também há os que foram contaminados pelas “fake news” medievais e por isso rejeitam, judiam, envenenam, torturam e matam como se nada fossem.

É certo que hoje as pessoas estão mais conscientes e estabelecem relações mais cuidadosas com esses animais, mas o trabalho de neutralização do preconceito e da violência contra eles ainda é longo.

Gatos pretos: uma história pessoal de amor e sorte

Três gatos pretos cruzaram o meu caminho e você vai ver que não tem por que fugir deles!

Ciça: a primeira gatinha que adotei aos 12 anos de idade foi a Ciça, uma gatinha preta bem miudinha, extremamente carinhosa, paciente e brincalhona que vivia solta no quintal e tinha acesso à rua, mas sempre estava por perto e dormia comigo. Ela foi o primeiro animal que eu tutelei na vida. Na época eu não tinha muito entendimento sobre gatos e vivi com ela algumas experiências tristes como uma gravidez mal-sucedida que pôs sua vida em risco e ocasionou a perda de todos os filhotes e o dia em que ela sumiu e não retornou nunca mais. Foram situações de preocupação e tristeza que mudaram algumas percepções que anos mais tarde fizeram mais sentido quando conheci o Thor.

Thor: ele ainda era um bebezinho orelhudo que cabia na palma da minha mão e que miava loucamente. Hoje, me colocando no lugar dele, deve ter sido mesmo assustador. Dessa vez, com a lição aprendida, ele foi castrado bem cedo. Seu tamanho diminuto durou pouco tempo, pois ele cresceu rápido. Inicialmente não não éramos tão amigos, pois ele era muito espoleta e quebrava coisas, agarrava nossos pés por baixo da mesa até que com o tempo foi se acalmando.

Quando ele tinha um ano, teve uma infecção urinária que mudou completamente nossa relação. Eu me dediquei a ele até que se recuperasse levando ao veterinário, dando os remédios e muito carinho. Percebi como ele era importante para mim, de uma forma que nunca tinha sentido. Foi nesse período que realmente estreitamos nossos laços e convivemos por quase 17 anos. Ele acompanhou um enorme período da minha vida, de 2001 a 2018, e viveu comigo todas as grandes reviravoltas, acontecimentos, mudança de casa, conheceu namorados, amigas e amigos. Ele estava sempre lá. Foi um grande companheiro, amoroso, sincero, sensível, dengoso e querido que tive o imenso prazer de contemplar e amar.

Em Julho deste ano (2018) ele se foi de maneira repentina e violenta, deixando um enorme vazio que jamais poderão ser substituídos. Essa partida, muito traumática para mim, trouxe um pano de fundo de tristeza, pois olhar para todos os lugares que ele ocupava e que agora não mais contam com sua terna presença é muito dolorido. Ele era único e estará pra sempre no meu coração trazendo muita saudade. Inclusive me faz lembrar de Ciça, de quem jamais pude me despedir.

Ele me ensinou tantas coisas sobre relações, sobre amor, sobre paciência, sobre sensibilidade que jamais esquecerei. Com ele aprendi a reverenciar o valor singular que tem a vida dos animais e de que, ao contrário do que gostamos de acreditar, nós não somos melhores do que eles. Neles reside uma pureza e uma nobreza que não nos é típica.

Um gatinho, um colo e minha vó: a terceira história ocorreu em uma ocasião muito peculiar, que foi o velório de minha avó Maria. Cerca de um mês antes de sua morte, quando ela estava na UTI, ela me contou que sonhou com o Thor (o meu gato preto) e que ele a olhava atentamente de um local mais alto e ela o chamava. No dia em que ela partiu, eu fiquei arrasada, inconsolável de tristeza. Após 2 meses cuidando dela todos os dias, sua partida foi ao mesmo tempo o alívio e descanso de que ela precisava, mas foi também a perda de uma pessoa muito importante para mim.

Por conta destas sincronicidades da vida, eu estava sentada em uma cadeira cumprimentando pessoas que chegavam para se despedir dela quando subitamente um gatinho preto com coleirinha brilhante entrou na sala. Imediatamente meu olhar se fixou nele que, tranquilo e certeiro, veio em minha direção subiu em minha cadeira, me deu um afago e se aninhou ao meu lado. Assim, como se me conhecesse há tempos. Parecia saber do que eu precisava. Parecia compreender que sua presença faria toda a diferença para mim naquele momento.

Lá ele ficou comigo até o sepultamento. Eu fiquei perplexa com a forma que ele mudou meu foco, me deu certa esperança, acolheu meu choro e depois simplesmente sumiu, foi embora. Obviamente não falamos a mesma língua e nem trocamos nenhuma palavra, mas foi como se tivéssemos conversado por horas.

Contei essas histórias, pois acho que elas ilustram um fato decisivo na maneira como percebemos os animais. Independente de qualquer crença ou qualquer ciência que gire em torno dos gatos pretos, de uma coisa tenho absoluta certeza: eles são seres sensíveis que prezam por suas vidas, por sua integridade física e psicológica e por sua liberdade. São seres únicos, com suas personalidades, manias, suas naturezas e merecem, no mínimo, como todo ser senciente, o nosso devido respeito.

Ninguém precisa gostar de gatos pretos, ou rajados ou de qualquer outro animal de qualquer espécie, mas definitivamente precisamos compreender que suas vidas valem muito mais do que atribuímos a elas. Mas se você aprecia esses animais e deseja ajudá-los, adote um amigo e ofereça a ele uma vida digna. Gatos vivem de 15 a 20 anos em um ambiente protegido e é preciso estar ciente de que seu comprometimento deverá ser por toda a vida dele.

Se você concluir que não tem condições de oferecer a ele o necessário, colabore com as organizações que se propõe a protegê-los, e principalmente, conscientize os amigos, a família e os conhecidos, para que possam reciclar de forma sistemática essa mentalidade, ainda contaminada, em relação a eles.

 

Thaís Khoury

Thaís Khoury

É psicóloga clínica e utiliza a interpretação dos sonhos, a calatonia e a expressão criativa em seus atendimentos. Também é vegana e fundadora do Veganíssimo, empresa que produz alimentos 100% vegetais.

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