Pesquisar
Loading...

Entenda qual é o significado de autossabotagem

Comportamentos de "autossabotagem" na verdade atendem a necessidades que não estão conscientes, mas que são importantes para nossa saúde mental.

Atualizado em

Você já ouviu falar em “autossabotagem”? Estou falando daquele tipo de situação em que uma pessoa “age contra ela mesma”. Supostamente, por motivos complexos, uma pessoa pode tomar atitudes que dificultam ou mesmo impedem que ela atinja seus objetivos.

Clientes chegam o tempo todo ao consultório do psicólogo se queixando de autossabotagem, e apontam comportamentos como procrastinação, vícios e outros hábitos pouco saudáveis. Sim, esses comportamentos complicam o caminho até nossos objetivos, mas será mesmo que faz sentido pensar que algo dentro de nós trabalha contra nós?

Não existe “inimigo interno”

Quando aplicamos o conhecimento da análise do comportamento para entender os porquês das coisas que fazemos, percebemos que essa hipótese do inimigo interno não se sustenta.

É mais razoável imaginar que algo dentro de nós busca atingir outro objetivo, suprir outra necessidade, que talvez não esteja tão visível, e que essas necessidades entram em conflito. Afinal, não somos seres simples; somos complexos, assim como o são as nossas necessidades.

Nada impede que tenhamos necessidades que são incompatíveis entre si, de modo que atender uma significa “sabotar” o atendimento da outra.

O significado de “autossabotagem” na vida real

Um cliente chegou se queixando de autossabotagem pois, apesar de ser intolerante ao glúten, bebia cerveja com amigos aos sábados, e passava os domingos se sentindo doente em função dos efeitos da bebida.

Ele me dizia: “Nada me impede de beber outra coisa; meus amigos são compreensivos e sabem do meu problema de saúde. Eu saio de casa decidido a beber outras coisas, mas mesmo assim, quando estou com eles, acabo bebendo cerveja. Por que me prejudico dessa maneira?”

O que está faltando para poder responder essa pergunta é entender qual o contexto de vida desse cliente. Ele era recém-chegado a uma cidade nova. Estava morando longe da família pela primeira vez, e encontrou nesse grupo de amigos o suporte emocional que necessitava.

O grupo que o acolheu tinha o “ritual” de beber cerveja aos sábados como um elemento de identidade. Por mais que eles fossem tranquilos ao acolher a “diferença”, o fato de beber outra coisa marcava meu cliente como o “diferente”.

Entendendo necessidades sutis

O sentimento de ser acolhido na diferença é reconfortante, mas ao mesmo tempo, nem sempre queremos nos sentir necessitados desse acolhimento. Ser diferente, ainda que sendo aceito, tem hora que cansa. Às vezes precisamos simplesmente nos sentir iguais a todo mundo, capazes de passar despercebidos.

O nome dessa necessidade é “pertencimento”. Por conta da nossa natureza e  fisiologia enquanto animais sociais, nós seres humanos temos o pertencimento como uma de nossas necessidades básicas. No passado, um ser humano que estivesse sozinho na floresta, sem pertencer a um grupo social, estava em risco de vida.

Ainda que a nossa realidade de sobrevivência tenha mudado muito, nosso cérebro ainda não mudou. Nesse ponto, se nos sentimos sozinhos ou isolados, se sentimos que não pertencemos, entramos em um estado de desespero.

Nosso cérebro se alarma com o risco à nossa sobrevivência, e se coloca num estado de prontidão. Faremos o que for necessário para pertencer, pois o que está em jogo é nossa vida.

Olhando por esse ângulo, o que é um pouco de dor de barriga, comparado com um risco à nossa sobrevivência?

Assim que nossa conversa chegou a esse ponto, o cliente entendeu seus sentimentos e seu comportamento. Aquilo que parecia um comportamento ilógico e irracional ganhou sentido. Ele entendeu as necessidades que estavam em pauta naquele momento.

Ele precisava cuidar de sua saúde física, não ingerindo glúten, e cuidar de sua saúde mental, obtendo o pertencimento necessário. A solução foi abandonar o projeto “vou beber outra coisa”; ele passou a comprar cerveja sem glúten e levar para o bar onde se encontravam. Essa solução só se tornou visível a partir do momento em que ele entendeu a validade da necessidade concorrente.

Autossabotagem “non ecziste!”

O que a terapia comportamental ensina: comportamentos de “autossabotagem” na verdade atendem a necessidades diversas que não foram trazidas à consciência.

Muitas vezes, essas necessidades passam despercebidas pois atendem a demandas mais sutis, mas não menos importantes: necessitamos sentir que temos autonomia e autodeterminação; pertencimento; dignidade, liberdade, segurança, igualdade, respeito.

Se não visualizamos com clareza todas as necessidades em jogo, continuaremos nos prejudicando, já que todas são igualmente importantes para a manutenção da nossa saúde mental.

Como lidar com “autossabotagem”?

  • Pra começo de conversa, evite classificar a situação como autossabotagem, para não correr o risco de desmerecer a necessidade que não está sendo atendida. Ela já é mais sutil, e por isso, mais difícil de identificar. Mas ela está lá e precisa ser notada.
  • Lance mão da auto-observação. Se pergunte: o que estou realmente fazendo ao invés do que eu “deveria” estar fazendo? E o que eu ganho com isso? Pare de focar nos objetivos que você não está conseguindo atingir, e olhe para o que está conseguindo produzir com seu comportamento “autossabotador”. Aqui estão as dicas para reconhecer a necessidade oculta.
  • Agora que sabe tudo o que está em jogo, pondere: existe alguma alternativa de meio-termo? De alguma maneira é possível conciliar ambas necessidades?
Tatiana Perecin

Tatiana Perecin

Psicóloga pela UFSCar, especialista em Psicologia Clínica / Análise do Comportamento. Trabalha com terapias contextuais, que são referência na intervenção psicológica baseada em evidências científicas de eficácia. Tem mais de 10 anos de atuação em consultório, atendendo adultos em casais em sofrimento emocional, e também casos severos.

Saiba mais sobre mim