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Veganismo para leigos

Entenda sua importância e como funciona esta prática, que vai além da alimentação

Atualizado em

Embora o veganismo, da maneira que o entendemos hoje, exista já há algumas décadas, o interesse por ele vem sendo crescente nos últimos anos e sua importância tem se mostrado cada vez mais presente no mundo todo, e no Brasil não é diferente.

Estatísticas ainda são escassas

Infelizmente, as fontes de dados estatísticos são mais precisas em países como Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha e Portugal, cujas populações são mais significativas e há um interesse nessa pesquisa. Por aqui, as estatísticas geralmente unem dados de vegetarianos e veganos e, por isso, não temos dados exclusivos da população vegana. Entretanto, o que pode ser observável de forma mais empírica e que evidencia o crescimento do veganismo é o crescimento do mercado, isto é, diversos empreendimentos, eventos, grupos em redes sociais, oferta de produtos, estabelecimentos que visam atender essa demanda ou repaginam seus negócios de forma a torná-los totalmente veganos e até mesmo indústrias veganas surgindo. Como dados estatísticos, geralmente, são feitos por órgãos governamentais, por não ser uma população majoritária, não há qualquer interesse nessa pesquisa.

Também, com tantos escândalos, notícias e divulgações científicas sobre os múltiplos problemas envolvidos no consumo de produtos de origem animal, especialmente as questões éticas sobre o próprio uso dos animais, torna-se cada vez mais difícil sustentar a crença de que eles são necessários aos seres humanos em qualquer âmbito.

A comunidade médica e científica, especialmente nos EUA, valida e prescreve progressivamente uma alimentação baseada exclusivamente em vegetais e torna-se cada vez mais significativa a cada ano. No direito e na filosofia debate-se com cada vez mais seriedade a questão de direitos animais e as questões éticas referentes ao seu uso. Nas neurociências e na psicologia seguimos avançando com informações fundamentais acerca da senciência, assunto a ser aprofundado posteriormente, mas que objetivamente refere-se à capacidade dos seres (inclusive humanos) de sentir e perceber dor e medo e evitá-los, bem como sentir, perceber e buscar o prazer por meio da liberdade de realizar a própria natureza.

Explorar outras espécies sencientes como nós, simplesmente porque não fazem parte de nossa própria espécie, é justificável moralmente? Esse é o questionamento central do veganismo, ou seja, a crença de que os animais não-humanos existem exclusivamente para servir aos humanos e atender seus interesses, sejam eles econômicos ou emocionais, como se não fossem seres, mas objetos.

Veganismo não é só alimentação, ele questiona a prática de tornar os animais objetos

Embora muito se atrele o veganismo à escolha dietética, esta está longe de ser o foco central. Certamente que a dieta é uma parte importantíssima da questão, já que é um aspecto crucial e intrínseco à existência e à vida, mas ela definitivamente não é a única. Talvez seja a mais fácil num primeiro momento.

Ao contrário do que muitos acreditam, também não se trata do problema do sofrimento animal ou do tratamento cruel que recebem ao serem explorados – o que por si só já seria totalmente objetável – mas sim da própria exploração, o próprio uso dos animais em si, independentemente de causar sofrimento físico ou psicológico. O veganismo questiona a comodificação dos seres de outras espécies, isto é, a deliberação de torná-los coisas, objetos sem qualquer valor inerente, passíveis de uso.

Pena dos animais não é a motivação principal do veganismo

Um outro equívoco é de que o veganismo acontece por meio de uma atitude compassiva ou amorosa em relação aos animais. Claro que esses elementos podem estar presentes na decisão de algumas pessoas, mas é o respeito, o senso de justiça e a lógica dos fatos que permite que esta decisão seja eticamente fundamentada. É o conhecimento objetivo dos processos e informações a que já temos acesso sobre as indústrias e sobre as naturezas de outras espécies, suas peculiaridades, suas personalidades e suas sociedades que cria condições para a mudança de perspectiva e consequentemente de hábitos e atitudes que os afetam diretamente.

Um aspecto importante que sobre o qual o veganismo se debruça é que o fato de compreender um ser senciente de outra espécie como um indivíduo impede que se justifique sua escravidão, isto é, forçá-lo a fazer algo que natural ou espontaneamente não faria. Impede que se atribua ao indivíduo um valor comercial e resguarda o seu valor intrínseco, isto é, o valor e a preciosidade de sua própria existência para ele mesmo. Um escravo não tem qualquer valor que não aquele atribuído às características específicas interessantes àquele que o possui. Portanto, o veganismo também se centra na abolição dessa mais do que ultrapassada escravidão animal.

Fomos programados para depender da exploração animal e naturalizá-la

Certamente não podemos desconsiderar que a nossa cultura foi amplamente programada para depender da exploração animal e fez crer, por meio da mídia, associada a corporações e instituições, que esse sistema era normal, necessário e por isso deveria ser aceito e até mesmo adotado como fetiche por toda a sociedade. Com toda a capacidade criativa humana, nos desenvolvemos imensamente do ponto de vista tecnológico, mas nos esquivamos de usar esse desenvolvimento para não mais explorar animais, mesmo com tantas possibilidades que se desvelam nesse sentido.

O que não acompanhou o desenvolvimento e o fortalecimento inconsequentes desse sistema foi justamente a imprescindível compreensão e projeção futura de seus efeitos mais nefastos e dos preços altíssimos que todos, especialmente os próprios animais, pagariam por essa alienação aos processos e mecanismos que mantêm esse sistema funcionando até o momento. Hoje o crescimento progressivo da busca pelo veganismo e do número de pessoas dispostas a adotá-lo como forma de estar no mundo de maneira mais justa e equalizada, demonstra que a realidade cruel, alienante e desnecessária a que submetemos outros seres se descortina. Com isso, temos a possibilidade de transformar profundamente nossas relações com eles que dividem o planeta conosco, com o planeta em si e com nossos corpos e emoções.

As 3 camadas do veganismo

1 – Símbolo

Além do conceito visto acima, eu vejo importância em compreender o veganismo também como um símbolo, cuja função é unir o que foi separado e que permite justamente resgatar uma relação que foi polarizada de forma negativa e injusta entre humanos e não-humanos, passando a considerar estes últimos como dignos da mesma consideração moral que oferecemos aos de nossa espécie.

A partir do reconhecimento dessa afinidade existencial (a senciência) entre humanos e não-humanos, o veganismo torna-se um símbolo da abolição da escravidão animal e estes passam a ser considerados igualmente como indivíduos e sujeitos de direitos, assim como humanos, numa relação mais dialética.

Thaís Khoury, autora do artigo, com um bolo de cenoura vegano (Imagem: arquivo pessoal)

2 – Prática Individual

O veganismo é também um processo individual de conhecimento e reconhecimento, isto é, ele não depende de outros para que o indivíduo se engaje, pois a pessoa que se torna vegana não o faz em nome de um status, de uma estética a ser validada por outros, mas sim porque compreende os princípios básicos que regem sua decisão. Nesse processo excluo as crianças cujas necessidades são totalmente dependentes das decisões parentais. Mesmo assim, muitas crianças se recusam a consumir animais e a família se vê obrigada a buscar informações a fim de atender às necessidades nutricionais e emocionais da criança, que posteriormente pode fundamentar eticamente suas atitudes.

3 – Coletivo

A ocorrência do veganismo enquanto um movimento coletivo se dá pela ampliação das práticas individuais de um número cada vez maior de indivíduos. Há, então, uma troca entre eles sobre o tema, surgem grupos de estudo, eventos especializados, comércios, manifestações e tudo que envolve a atitude grupal norteada por um objetivo comum que, no caso do veganismo, é a recusa em compactuar com a exploração animal – ele é a própria abolição da escravidão animal.

Breve história e conceito do veganismo

O termo veganismo foi cunhado em 1944, por Donald Watson, fundador da Vegan Society no Reino Unido. Ele criou o termo a partir de um neologismo da contração da palavra veg(etari)anism = veganism, o que causou uma grande confusão terminológica, que perdura até hoje, já que o termo inicialmente referia-se apenas à retirada de produtos de origem animal da dieta. Somente em 1979 firmou-se o conceito que incluía qualquer forma de exploração animal, tendo resultado na seguinte definição:

“Filosofia e modo de viver que busca excluir – enquanto possível e praticável – toda forma de exploração e crueldade aos animais por comida, roupas ou qualquer outro propósito; e por extensão, promover o desenvolvimento e uso de alternativas sem animais para benefício de humanos, animais e o meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos os produtos feitos inteira ou parcialmente de animais”. (Vegan Society, 1944)

A diferença crucial entre o vegetarianismo e o veganismo passou, então, a designar o primeiro como referente somente à alimentação pautada unicamente em vegetais, em geral considerando razões religiosas ou de saúde, e o segundo abrangendo também outros setores da vida humana e rejeitando diretamente qualquer forma de exploração animal para qualquer fim.

Este foi o primeiro texto de uma série sobre o tema e trata de uma visão mais geral, ficando para os textos subsequentes o aprofundamento em questões mais específicas sobre veganismo.

Thaís Khoury

Thaís Khoury

É psicóloga clínica e utiliza a interpretação dos sonhos, a calatonia e a expressão criativa em seus atendimentos. Também é vegana e fundadora do Veganíssimo, empresa que produz alimentos 100% vegetais.

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