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Sagrado Feminino e Feminismo: duas vias de empoderamento

Como conciliar as duas concepções e construir caminhos

Atualizado em

Sagrado Feminino e Feminismo, Círculo de Mulheres, culto às Deusas, Wicca, neopaganismo… Tudo isso são formas de vivenciar a espiritualidade nas mais recentes décadas em que o trânsito religioso aumentou.

A busca pela espiritualidade tornou-se mais diversificada e nem sempre ligada a uma instituição religiosa, gerando um movimento de resgate do papel e do lugar das mulheres na História.

A estudiosa Daniela Cordovil sugere que nessa Nova Era a humanidade passa a identificar a supremacia do masculino e a mentalidade patriarcal como predadora do meio ambiente, propondo um “resgate do feminino como elemento primordial da conexão com o sagrado”.

Nesse sentido, a sacralidade do feminino aponta para busca de empoderamento e conscientização das mulheres sobre si mesmas, seus ciclos corporais e menstruais, sua conexão com a natureza, seu papel na História com figuras femininas de referência, as características que lhes (nos) seriam comuns e partilhadas.

Nesse contexto, representações de distintas tradições mitológicas, religiosas, filosóficas e culturais, além de figuras históricas, são resgatadas e colocadas lado a lado, como forma de gerar referências femininas atemporais.

Diana, Afrodite, Atena, Iemanjá, Mãe Terra, Lua, Deusa Tríplice, Joana Darc… mulheres históricas ou míticas que oferecem uma possibilidade de representação arquetípica.

As tensões entre Sagrado Feminino e Feminismo

Como um movimento de empoderamento feminino, tudo indicaria que o Sagrado Feminino ou o Círculo Sagrado de Mulheres fossem saudados pelos feminismos militantes.

Isso porque entre Sagrado Feminino e Feminismo há grandes pautas maiores em comum, como busca por visibilidade das mulheres e ocupação de lugares de reconhecimento e poder, luta por igualdade de condições ou equidade no gênero, luta pelo fim da violência de gênero, entre outras.

No entanto, há “torção de nariz” entre muitas feministas para as mulheres (chamadas de maneira positiva ou pejorativa de bruxas) dos Círculos Sagrados.

Assim como muitas dessas bruxinhas não compartilham dos discursos feministas por considerá-los radicais.

Imaginário religioso x imaginário de luta política

Para compreender essa tensão, recordamos que tal debate esbarra em uma origem mais ampla e anterior. Por causa das grandes narrativas religiosas tradicionais, a representação das mulheres passou a ser reforçada socialmente de modo a reproduzir estereótipos de gênero.

A pesquisadora Carolina Teles Lemos aponta para as naturalizações de gênero que as religiões cristãs têm reforçado e produzido ao longo de sua história.

Ela indica que o reforço à perspectiva de naturalização da maternidade, da virgindade e da figura da mulher relacionada a atributos como pureza, docilidade, cuidado e compaixão estariam relacionados com o mito à figura de Maria.

Ela aponta que a construção do patriarcado e suas relações desiguais é apoiada na tradição judaico-cristã, na exaltação da imagem de um Deus-Pai e um filho homem salvador.

Ao passo que às mulheres são reservados os lugares: pecadora, destruidora de moral e perigosa, como Eva, Maria Madalena, ou ainda o lugar da virgem, pura, bondosa e mãe.

Esses lugares idealizados teriam reforçado ao longo da História o controle social da Igreja sobre a sexualidade feminina, por meio das narrativas e atributos dos personagens bíblicos.

Além das narrativas cristãs, outras religiões tradicionais, como o islamismo, operam com práticas que tendem a reforçar um lugar de submissão à mulher, necessitando da tutela de um homem para realizar ações públicas.

Nesse sentido, um ala mais ativista do feminismo no mundo, em especial grupos que ganham notoriedade internacional, como o Femen, compreendem as religiões como fontes de opressão e submissão das mulheres, sendo que qualquer prática religiosa ou espiritual imediatamente evoca um imaginário a ser combatido.

Ao mesmo tempo, a ideologia das lutas feministas é rechaçada por algumas bruxinhas dos Círculos do Sagrado Feminino, que consideram os feminismos muito radicais, duros, base para uma guerra desnecessária entre homens e mulheres. Religião e política seguem em arenas ideológicas tensas, embora a História tratou por vezes de aproximá-las.

Claro que ao conversarmos sobre imaginário, narrativas e estereótipos, deixamos de fora nuances importantes do debate. Nem todas as religiões e as formas de religiosidade operam em uma lógica machista e mesmo as que operam agregam espaços de reflexão e adeptos com outras práticas e linhas de pensamento. Mas o mal-estar conceitual e histórico está vivo.

O debate entre natureza e cultura

Outro tópico importante é a diferença estrutural nas perspectivas do Sagrado Feminino e do Feminismo. Enquanto adeptas do Sagrado Feminino retomam os ciclos naturais da mulher, valorizando seu corpo, a menstruação, a gestação, suas relações com os ciclos da natureza, exaltando características de um feminino arquetípico.

Portanto, universal e atemporal, as feministas militantes, xs “queer”, LGBTs e grande parte da linha de Estudos de Gênero rejeitam tais categorias, por conta da produção de narrativas essencialistas sobre o que é ser mulher.

Quem fortemente chamou atenção para estas produções discursivas foram Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Judith Butler e muitas outras/os.

A partir desse chamado do gênero, o sujeito não pode ou não deve ser definido a partir de parâmetros pré-determinados.

Pois o ser mulher, ser homem, ser trans, ser bi, ser hetero, ser travesti, não seriam realidades ou verdades internas, e sim, construções móveis inseridas na historicidade, na linguagem e nos processos culturais.

Ao abordar um feminino universal ou uma força que uniria todas as mulheres a partir de algumas características como gerar, nutrir, entre outras, o Sagrado Feminino acaba por aderir a mentalidades que se contrapõem à luta feminista de desconstrução sobre as ideias de feminilidade que o patriarcado incutiu socialmente.

O feminino trans, um feminino que transita, borra e desafia fronteiras do que é ser mulher, e fronteiras de gênero de modo mais amplo, coloca-se, diante da perspectiva de um feminino sacralizado dos Círculos Sagrados, como um desafio.

Afinal, definir as mulheres a partir de características a elas historicamente atribuídas não seria justamente um reforço ao pensamento binário e dicotômico no qual se apoia o patriarcado e as invisibilidades e exclusões de gênero? A sacralidade do feminino estaria na vagina? Na menstruação? Na intuição?

Na maternidade? E as mulheres que não menstruam, não têm filhos, não têm vagina? Como o feminino que se pretende sacralizado pode se encontrar com a perspectiva feminista de desconstrução dos estereótipos de gênero?

A espiritualidade New Age não se propõe a manter os mesmos padrões rígidos da religiosidade tradicional. No entanto, quando mantém o discurso que essencializa uma natureza para a mulher, o Sagrado Feminino acaba por situar-se em um lugar desconfortável em relação às lutas de gênero.

Sagrado Feminino e Feminismo: os debates de gênero

O Sagrado Feminino, que enaltece deusas e figuras femininas mitológicas e históricas de referência, apoia-se epistemologicamente na perspectiva arquetípica, vinda da Psicologia Junguiana.

Tal perspectiva considera que existem estruturas na psique humana que perpassam culturas e períodos históricos, que seriam como modelos que se configuram em imagens primordiais associadas a experiências da humanidade, presentes no inconsciente coletivo.

Estamos nos referindo aos arquétipos, conceito desenvolvido em algumas obras de Jung, como O Homem e seus símbolos, Arquétipos do Inconsciente Coletivo, entre outras.

Sempre que falamos de estruturas que perpassam os humanos de todas as épocas, as “antenas” de estudiosos e militantes de gênero se erguem, afinal, o acultural e o atemporal são caminhos que facilmente desembocam em naturalizar o que poderia ser localizado historica e socialmente. No entanto, Jung indica que o arquétipo não se refere a um conteúdo fixo.

Nenhum arquétipo pode ser reduzido a uma simples fórmula. Trata-se de um recipiente que nunca podemos esvaziar, nem encher.

Ele existe em si apenas potencialmente e quando toma forma em alguma matéria, já não é mais o que era antes.

Persiste através dos milênios e sempre exige novas interpretações. Os arquétipos são os elementos inabaláveis do inconsciente, mas mudam constantemente de forma.

Nesse sentido, os conceitos de Anima e Animus, comumente associados a determinadas características do “ser mulher” e do “ser homem” ou à feminilidade e masculinidade, estariam sendo usados de modo equivocado.

O uso popular da teoria arquetípica de Jung transformou a perspectiva dos arquétipos em uma matéria de direção unicamente essencialista, quando sua teoria aponta para outros parâmetros.

Embora não se possa negar o reforço a dicotomias de gênero naturalizados no uso da teoria de Jung, se seguirmos profundamente seus argumentos, reconheceremos que ele postula, antes, uma psique híbrida para todxs, em que Animus e Anima estariam presentes como energias e representações do masculino e do feminino sem um conteúdo definido em todos os seres humanos, atuando de forma complementar no dinamismo da psique.

Masculino e Feminino

Masculino e feminino não seriam representações diretas e literais de como ser homem e como ser mulher ou ainda de como devem ser homens e mulheres, mas sim princípios energéticos com potencial de tornarem-se algo além de si, por meio do encontro com o outro pólo.

A postulação junguiana acerca de gênero não é binária, conforme se reproduz popularmente. As concepções de Animus e Anima não deveriam ser traduzidas como o masculino é y e o feminino é x, pois não foi desse modo que Jung se pronunciou.

A popularização da teoria junguiana e sua utilização no campo esotérico trouxe uma prática de simplificação de alguns de seus conceitos. E esta simplificação deu lugar ao reducionismo que atrela características específicas (conteúdo) ao arquétipo do masculino e do feminino (forma).

É importante lembrar que Jung viveu em um tempo em que as reivindicações de direitos e políticas públicas de gênero ainda se debruçavam sobre direito à voto das mulheres em muitos países.

Nesse período, a patologização das sexualidades não convencionais ainda era uma realidade forte, no qual ainda não se formulava entre muitas sociedades a possibilidade civil de casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a alteração oficial e pública da identidade de gênero. Teoria Queer, Judith Butler e toda essa corrente que nos tempos atuais é quente, nada disso ainda existia.

De maneira pouco convencional e quebrando paradigmas da ciência da qual era herdeiro, Jung propôs que o funcionamento da psique ocorre em uma dinâmica que equilibra elementos complementares e que por vezes ocupam funções aparentemente opostas no funcionamento psíquico, sugerindo, desta forma, uma psique híbrida entre masculino e feminino.

Como aproximar Sagrado Feminino e Feminismos

Em termos de prática, não se pode pensar a emancipação feminina hoje sem a formação de redes, que incluem as mais diferentes concepções da luta feminina e feminista.

O papel da tecnologia nessa formação e manuntenção das redes é um chamado importante de algumas feministas como Donna Haraway e Judy Wajcman em uma busca de conexões na luta feminista, tão plural e por vezes conflitiva, como no caso aqui citado entre Sagrado Feminino e feminismos políticos.

Nexos, conexões, redes, assim as mulheres nos unimos e nos conscientizamos umas às outras de aspectos da luta desconhecidos para as partes.

Cada ponta da luta é apenas expressão da luta maior, que é a defesa da possibilidade de existir em uma vida plena, psicologica, social, profissional, amorosa, corporalmente.

Uma vida sem violências, sem invisibilidades, sem opressões. Sendo bruxas, deusas, ciborgues, com ou sem pênis, trans, não-binárias, homossexuais, religiosas, ativistas, diretoras, donas de casa. Solidariedade, mulheres, é tudo que temos.

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco é psicóloga, com Doutorado em Ciência das religiões e Pós-Doutorado em Estudos de Gênero. Atua com Direitos Humanos, Gênero e Religião, além de ser terapeuta, taróloga, astróloga e analista de sonhos.

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