Palavras que falam ao coração
Poemas ajudam a se conhecer melhor e encontrar um sentido para a vida
Por Personare
Quem gosta de literatura certamente já se encantou com algum texto de Shakespeare, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, entre outros. Mais do que mexer com as emoções do leitor, os poemas também podem ajudar as pessoas a se conhecerem melhor e encontrarem um sentido para a própria vida. É o que afirmam os estudiosos em assuntos espirituais, Neusa Soliz e Armando Nakata. Os especialistas explicam que a linguagem poética exprime os sentimentos do ser humano e propõe uma jornada de autoconhecimento.
“Queremos saber quem somos e qual é a causa dos sofrimentos, das angústias e das injustiças. A poesia mostra a perplexidade do ser humano diante desses mistérios da vida e nos conduz a uma busca interior. É por isso que os poemas mexem tanto com as emoções das pessoas, elas identificam no texto as dúvidas que possuem. Os poetas são como porta-vozes daquilo que todos nós guardamos dentro de nós, mas muitas vezes não conseguimos exprimir”, avalia Armando, que há 20 anos estuda as Escrituras Sagradas de todos os tempos.
Já Neuza reforça que a beleza encontrada nos textos chama atenção e atinge os sentimentos mais profundos das pessoas. “Os poemas usam sugestões, criam imagens vagas ou inusitadas, procurando tirar a gente da zona de conforto e nos oferecer novas perspectivas. E eles têm ainda sonoridade, rimas, ritmo, cadência. Poesia se escreve com o coração, na maioria das vezes. Percebemos que muitos poemas vêm de dentro, do íntimo, do mais profundo do ser. Talvez, por isso mesmo, eles atuam sobre o leitor num nível mais sutil e são capazes de chegar até a nossa alma”, filosofa a jornalista, que se dedica há mais de dez anos aos estudos espirituais.
Poesia e Espiritualidade
Apesar de parecerem tão diferentes, poesia e espiritualidade podem ter mais características em comum do que você imagina. Ambas não possuem um sistema lógico para se apoiar. É por meio da subjetividade e das sutilezas que as pessoas conseguem encontrar algum sentido para o que estão lendo ou buscando na vida.
“Sempre associamos a lógica ao pensamento racional, aquilo que podemos comprovar. Por isso muitas vezes os poetas são taxados de visionários e loucos. Eles tiram a sua inspiração de algo que podemos chamar de conhecimento interior. E a lírica é a melhor forma de expressão, justamente por que não exige comprovação, não impõe limites à imaginação. A poesia sempre é subjetiva, porque brota da vivência de alguém, das suas dores e inquietudes”, esclarece Neusa.
A licença poética muitas vezes permite o uso de antíteses ou paradoxos nos textos. Acreditar, ter fé, também implica em uma série de dúvidas e contradições, até a pessoa encontrar seu próprio caminho. Armando ressalta que, num contexto mais amplo, o termo “espiritualidade” sugere a busca do ser humano pelo sentido da sua própria vida e o significado da sua existência neste mundo. E isso é encontrado na poesia.
“Quando os poetas colocam seus sentimentos mais íntimos no papel, nos auxiliam a ver que nossa vida não é uma ciência exata, somos seres por natureza contraditórios e paradoxais. Essa contradição fica evidente na obra de Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, que insistem na necessidade do autoconhecimento. E a espiritualidade requer esse caminho dinâmico de conhecer nós mesmos em primeiro lugar, para compreender as nossas fraquezas, os nossos desejos insatisfeitos, e os nossos preconceitos e condicionamentos”, compara Armando.
Poesia na prática
Alguns poemas mostram uma relação mais clara com a espiritualidade. De acordo com Armando o tema é muito presente na obra do escritor e poeta Fernando Pessoa, que tinha reconhecidamente um lado místico. “Em seu livro Mensagem ele aparentemente nos conta a saga dos portugueses na época das grandes navegações. No entanto, essa viagem vai adquirindo contornos de um significado mais profundo, servindo como metáfora para a condição humana, da busca da espiritualidade, da origem do homem e do significado da sua existência”, ressalta o especialista.
Confira abaixo um trecho do poema:
“Mensagem” – Fernando Pessoa
“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.
Armando explica que, em Portugal, o Cabo do Bojador significa o último limite do homem e do seu mundo. “Em poucos versos, Pessoa nos sugere que essa busca “além da dor”, pelo mar afora, é uma metáfora da existência humana. Diz que cruzar esses mares desconhecidos implica em perigo e abismo. Mas, ao mesmo tempo, nos dá um imenso conforto, ao dizer que o criador espelhou o céu no mar”, interpreta o especialista.
Já Neusa Soliz aponta que o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe tinha um profundo conhecimento de várias áreas do saber, inclusive as de fundo espiritual. Na obra “Fausto”, Goethe diz que “duas almas habitam” no peito do ser humano, e que elas são opostas. Enquanto uma “se aferra ao mundo físico” com unhas e dentes, a outra procura elevar-se desse mundo, “remontando às alturas de sua excelsa origem”.
“Na verdade, somos movidos pelas nossas dúvidas e são as nossas “duas almas”, que nos arrastam ora para um lado, ora para o outro. Porque o movimento parece ser um dos princípios básicos da vida. O nosso mundo também oscila do dia para a noite, de uma planta que brota a outra que fenece, na “terna mutação da natureza”, de que nos fala Shakespeare, no seu poema “Sonho de uma noite de verão”. Os grandes poetas de todos os tempos foram, sem dúvida, buscadores. André Breton, em sua análise sobre a poesia diz que “em todos os tempos, os verdadeiros poetas foram mais ou menos marcados pela Gnosis”. Gnosis significa um conhecimento de primeira mão, interior, que independe de autoridades e dogmas, produto de um caminho de vivência e autoconhecimento”, justifica a jornalista.
Outro poeta que fala sobre espiritualidade é o espanhol Juan de la Cruz:
“Para vir a gostar de tudo,
Não queiras ter gosto em nada.
Para vir a saber tudo,
Não queiras saber algo em nada.
Para vir a possuir tudo,
Não queiras possuir algo em nada.”
Segundo Armando, esse trecho remete a um estado de desprendimento em relação a tudo que as pessoas sabem – ou acreditam saber – para que possam se abrir a algo verdadeiramente novo. “Esse poema serve de introdução a um processo interior de gradual transformação da nossa consciência”, afirma.
Palavras que fazem bem para a mente
Além de ajudar as pessoas a buscarem a espiritualidade, os poemas também podem ser benéficos para a saúde mental. Neusa acredita que externar as emoções em palavras pode ter um aspecto terapêutico e ajudar na jornada interior.
“Muitos escritores famosos precisaram da literatura como quem precisa de ar para viver, não podiam imaginar outro tipo de vida senão escrevendo. Seu mundo interior era muito rico para ficar contido em si. Fernando Pessoa é um bom exemplo disso, com seus inúmeros heterônimos. Segundo estudiosos, o poeta português possuía 72 personagens, que representavam suas “máscaras”. Não deixa de ser curioso que o nosso termo “pessoa” seja derivado do latim “persona”, que significa máscara. Talvez precisemos dessas máscaras na sociedade. Mas se enveredamos pelo caminho do autoconhecimento, podemos reconhecê-las”, finaliza a especialista.
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