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  • Liberdade de ser quem você é

    127 horas para reconhecer a identidade através dos limites do corpo

    Atualizado em

    Como o filme “127 horas” é baseado em fatos reais, estou partindo do pressuposto que todos já sabem que se trata da história de um jovem alpinista que ficou preso por dias em uma fenda de montanhas norte-americanas e teve que amputar parte de seu braço para sair de lá. Pronto! Já iniciei o primeiro parágrafo contando o final. E quero deixar claro que saber o que vai ocorrer não tira nem um segundo da emoção de acompanhar como a história se desenrola. Pelo contrário, saber antecipadamente o final nos faz acompanhar cada detalhe da trama com a angústia de quem espera o momento em que Aron, o personagem vivido por James Franco, desiste de tentar artifícios para remover a pedra de cima de seu braço direito e escolhe viver, sacrificando essa preciosa parte de seu corpo.

    O jogo de imagens proposto pelo diretor Danny Boyle parece, por vezes, contrapor a miséria da situação material em que Aron se encontra (sem comida, com pouquíssima água, sob forte dor física, sem apoio para os pés, cabeça ou costas) ao deleite com certa ênfase no uso irrestrito do mundo como fonte de prazer consumível. Nesse sentido, imagens de marcas consagradas como Gatorade e de sensações extasiantes como a de sentir o gás na face ao abrir uma lata de refrigerante juntam-se a momentos de prazer sexual e afetivo para nos lembrar do óbvio: que é na privação que as sensações boas que já vivemos se intensificam, utilizando a memória como aliada no processo de reconstrução de quem somos.

    Desafiando limites

    “127 horas” é um filme sobre o reconhecimento de Aron de sua própria identidade, sobre como seu caminho tinha sido, até então, solitário e, de certa forma, egoísta, individualista. Cá estamos sem julgamentos morais, afinal viver a vida do modo como se quer, sem ter de corresponder às expectativas, às preocupações, aos telefonemas e principalmente, aos afetos alheios é uma escolha possível dentre tantas que temos. É uma escolha que exalta a liberdade de ser quem somos e prestar contas somente a nós mesmos.

    Pois é, mas essas contas chegam em algum momento. E para Aron, o alpinista despojado que não avisa ninguém sobre o rumo que decidira tomar no final de semana, o rapaz livre de alma que não consegue corresponder a um amor, o jovem abusado que desafia os limites da vida e incita garotas que encontra pelo caminho a fazerem o mesmo, ah, para Aron, as contas chegaram bem no auge da tarefa para a qual mais se dedicava: a liberdade.

    O maior desafio à liberdade é o limite, que chega sem avisar, com uma força “cármica”, “divina”, ou para alguns meramente casual, mas ainda sim, uma força que não está na dimensão de nosso alcance e nos arrebata da imensidão de possibilidades jogando-nos para o incômodo espaço finito, limitador no qual é preciso ficar. Do ponto de vista psicológico, pode-se dizer que Aron esteve mergulhado na experiência inconsciente do id, onde tudo é possível, viável e prazeroso, dentro da perspectiva que mais acomoda sua alma. E depois, foi lançado brutalmente ao ponto de vista castrador do superego, que elabora as próprias leis dentro das realidades visitadas. O problema é para quem fica no meio da brincadeira, o pobre do ego, que precisa revirar os baús da memória, encontrando os erros e acertos, os fragmentos de identidade que o conduziram até o momento-chave do acidente. E mais, o ego, além de reconhecer sua própria fragilidade, admitir e assumir a própria responsabilidade por toda a dor, precisa elaborar um plano de saída, mas que consiga acompanhar as debilidades do corpo, cada vez mais evidentes. O medo da morte fez com que Aron visitasse mundos muito pouco visitados dentro de si. Ele deparou-se com o medo, com a fraqueza, com indícios de uma quase loucura…

    Reconhecimento e aceitação

    Alguns símbolos são marcantes no filme. Além do Gatorade, já citado, Scoby Doo rouba a cena, mostrando um certo tom de deboche sobre as futilidades da vida comparadas a um momento trágico como o que Aron vive. O pássaro preto que sobrevoa sua limitada visão pela manhã lembra a liberdade perdida, o horizonte que não mais se vê, tornando-se um elemento de força para que Aron se conectasse com o mundo de fora. Também devemos ressaltar o simbolismo do sol que invade a fenda em breves momentos, trazendo a ideia de que há vida real lá fora, sim, senhor. Não é preciso duvidar ou se confundir, como no mito da caverna; o sol está lá para provar isso.

    Dentre todas as passagens do filme, destaco o momento “auditório”, em que Aron entrevista a si mesmo, reconhecendo para sua câmera suas “humanidades egoístas”. É de um humor interessantíssimo. Vale lembrar que o cúmplice de toda a trajetória é um aparelhinho de filmar, que ao invés de ser nomeado de câmera, poderia levar o codinome de confessionário. E é justamente por saber que será ouvido depois, que Aron conta, abre-se, reflete, entende, reconhece e aceita muitos pontos de sua trajetória humana, demasiado humana.

    Merece uma ida ao cinema. Você não gastará nem 127 minutos.

    Clarissa De Franco

    Clarissa De Franco

    Clarissa De Franco é psicóloga, com Doutorado em Ciência das religiões e Pós-Doutorado em Estudos de Gênero. Atua com Direitos Humanos, Gênero e Religião, além de ser terapeuta, taróloga, astróloga e analista de sonhos.

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