Pesquisar
Loading...

A importância dos Ritos e o paradoxo do desapego

Sem perceber, nos conectamos com ritos todos os dias, e isso eleva nossa sensação de pertencimento. Entenda a importância dos ritos

Atualizado em

A ritualidade é imanente ao ser humano. Afinal, a cada manhã iniciamos um ritual quase imperceptível. Uma coreografia sincronizada de hábitos que moldam o curso do dia. Neste artigo, explico a importância dos ritos para a sensação de pertencimento e sua relação paradoxal com o desapego.

Ritos no dia a dia

Desde o despertar até a escolha das roupas, cada ação é um passo dentro do compasso invisível das rotinas.

Assim, estas ritualidades, muitas vezes automáticas, tecem a tapeçaria que reflete valores, metas e identidade. Portanto, a importância dos ritos está também no emolduramento da estrutura oculta que dá sentido à aparente simplicidade do cotidiano.

Encontramos o cotidiano também retratado nas pinturas rupestres. Nas cenas, o ser humano retrata a si mesmo em interação com tudo que o permeia, no mundo real e imaginado.

Desse modo, fica evidente que o desejo de se representar e dar significado é imanente à humanidade.

Por imanente, entende-se aquilo que está inseparavelmente contido na natureza de um ser. Afinal, a natureza humana envolve escrever a própria história e deixá-la como legado.

Também envolve necessidades básicas específicas e subjetividades, como o senso de ritualidade e sacralidade. 

Desenhamos nas paredes das cavernas, dançamos para o fogo e a Lua. Pedimos aos deuses que nos dessem a boa colheita. Aprendemos que havia alguma relação entre o mundo interno e o externo. 

Sendo profundamente orgânica, a ritualidade e os ritos atuam organizando as subjetividades.

Ritos e rituais 

Os ritos são como leis. Tratam-se de objetivos por trás de tudo. A importância dos ritos se dá porque refletem princípios que os orientam, e têm elementos históricos, dentro de um grupo e cultura.

Desse modo, a celebração dos ritos, isto é, a concretização dos costumes, das regras estabelecidas e dos ensinamentos, é chamada de ritual. Enquanto o rito é o conceito geral, os rituais são as práticas.

Talvez onde você trabalha exista o “sextou!”, celebrando a semana de trabalho que termina e antecipando o encontro da próxima semana.

É uma verificação festiva de vida e pertencimento. Sendo preservada, em pouco tempo passa a fazer parte da cultura da empresa e torna-se orgânica.

A importância dos ritos

Rituais têm como marca a repetição. Desse modo, oferecem uma sensação de segurança, não apenas por sua familiaridade, mas porque promovem um sentimento de coesão social. Além disso, ajudam a criar um senso de continuidade, conexão e significado.

Nos conectamos com rituais por razões que emanam, e ao mesmo tempo atendem em algum nível, às necessidades primárias humanas. São elas: Previsibilidade, Pertencimento, Proteção, Celebração,Tradições, Alívio de Estresse, Tempo e Território e Conexão Espiritual, além de outras camadas. 

Nos concentraremos sobre as quatro primeiras, pois se referem às necessidades básicas de autorregulação. Elas existem independentemente da cultura, pois são necessidades do corpo para alcançar equilíbrio emocional. Portanto, coincidem com características que são marcas comuns aos rituais, como a repetição e o senso de coesão. 

Os quatro pilares das necessidades básicas humanas

Previsibilidade, Pertencimento, Proteção e Celebração funcionam de maneira entrelaçada e interdependente. Eles compõem os pilares para a autorregulação e sobrevivência. 

Previsibilidade

Primariamente, enquanto bebês, precisamos que o alimento esteja disponível na hora certa. Também necessitamos que a higienização aconteça síncrona com a necessidade de higiene. A criança quer ser atendida no seu tempo. Essa previsibilidade a acalma. Receber resposta imediata às necessidades, e a repetição dessas respostas, traz segurança.

Pertencimento

Para que a necessidade de previsibilidade seja atendida, é necessário pertencer, ter iguais por perto. Pertencimento ocorre como um reconhecimento, de pessoas e territórios, com os quais nos identificamos e que nos identificam como pertencentes. Desse modo, sentimos confiança. 

O cheiro da mãe, a voz da pessoa cuidadora, a qualidade da atenção, tudo isso colabora com o senso de coesão e direção. Sabemos para aonde ir e à quem recorrer. Assim, buscamos o aconchego no colo do cuidador e essa proximidade é regulatória para o corpo.

Proteção

Se experimentamos previsibilidade ao sermos atendidos e pertencentes, igualmente encontramos o senso de proteção. Proteção refere-se à experimentar proximidade, familiaridade, disponibilidade, abraço, toque afetivo, colo, no sentido orgânico e no sentido sutil. Isso estimula ainda mais o sentimento de segurança.

Não é à toa que ter e confiar em amigos que nos acolham nos acalma tanto. Afinal, são nossos pilares básicos sendo atendidos de forma natural. Encontramos conexão e significado.

Celebração

Seguros, podemos então celebrar. Celebração também é necessidade básica e se manifesta na infância, no ato de brincar. Bebês brincam e no brincar é que aprendem sobre si mesmos. Aprendem até onde podem ir, o que podem suportar, dividir, pedir e receber. Desse modo, aprendem a lidar com as próprias emoções e com as emoções dos outros. Os limites entre \”eu e o outro\” são estabelecidos no brincar

Todas as cerimônias que conhecemos se orientam por previsibilidade, pertencimento, proteção e celebração. Pode ser tanto num rito formal, como uma colação de grau, ou aguardando o momento do pôr do sol para aplaudi-lo.

As características dos rituais, subjetivamente, atendem às necessidades desses pilares básicos. Como resultado, rituais nos acalmam, nos conectando e preenchendo de significado.

A impermanência é uma lei da natureza

É possível que você conheça a citação de Heráclito de Éfeso “nada é permanente, exceto a mudança”, mas talvez nunca tenha se dado conta da impermanência, embora ela esteja na experiência diária.

Na infância, no brincar, aprendemos sobre a impermanência. Afinal, a hora de brincar terminará e isso provoca certa angústia e insatisfação. Paradoxalmente, para brincar com qualidade de presença, é necessário esquecer-se do tempo e, simplesmente, estar presente. 

A maioria de nós conhece a experiência do tempo que passa mais rápido ou mais lento, de acordo com o estado emocional. Às vezes, gostaríamos de dar pausa naqueles momentos que nos marcaram por algum nível de bem estar.

Sendo mudança uma lei da natureza, por conseguinte a vida é efêmera. Tudo nasce, se desenvolve e morre, entregue aos ciclos naturais da impermanência. 

Isso abala os quatro pilares básicos e, constantemente, precisamos verificar o quanto as coisas são previsíveis e se há proteção suficiente. É um ciclo sem fim.

Rituais mudam a relação com o tempo, atenuando as sobrecargas

Conhecemos a instabilidade e a impermanência no próprio corpo. Afinal, nos custa saber que tudo que apreciamos pode mudar ou desaparecer no momento seguinte. O tempo não aguarda a nossa vontade.

Este conhecimento, em tese, deveria nos levar à uma postura de maior contemplação no agora, no presente. No entanto, nossa mente sofre uma espécie de curvatura em direção ao futuro, elaborando condições ideais (quando… se… somente se…), ao mesmo tempo em que outra curvatura vai para o passado, buscando as possíveis justificativas das coisas (por causa de…).

Diante da quase impossibilidade de viver no agora, encontramos uma maneira de nos relacionar com o tempo. A mais comum de todas é a invenção do calendário. 

Assim, ao empacotar o tempo, encontramos alguma sensação de controle, pois ciclos tem começo e fim. De certa forma, esse recurso atende à necessidade de previsibilidade, assim como de proteção. 

É fácil perceber que determinadas datas (aniversário, passagem de ano, ou de ciclos astrológicos), nos movem para observar o efeito do tempo sobre nós.

O exercício de vasculhar o tempo é essencialmente humano e as retrospectivas nos ajudam a “contê-lo” e “selecioná-lo”. Assim, somos tomados por subjetividades, como a revisão das experiências e projeção de novas expectativas. 

Ritos mudam a relação com o tempo atenuando as sobrecargas, o que pode ser experimentado nos rituais, desde os mais complexos até as práticas meditativas silenciosas, ou durante um banho relaxante.

O paradoxo do desapego

Gostaria de abordar nossa relação com os ritos e o desapego. É verdade que nem tudo nos serve. Muitas coisas demandam ser dispensadas, outras precisam de reciclagem. E o movimento de desapegar, antes de ritualístico, é uma necessidade orgânica, portanto natural.

Um exemplo orgânico de desapego pode ser associado aos intestinos, que são muito responsivos durante a infância, especialmente quando estamos aprendendo como deveríamos nos comportar para sermos aceitos, quais são nossos lugares seguros, que ritos devemos seguir. Esse é o órgão que esperamos que, diariamente, tire as toxinas de dentro do corpo, momento que pode ser muito celebrado e ritualístico, como é para uma criança.

No entanto, no que se refere aos aspectos subjetivos (sentimentos, ressentimentos, mágoas, frustrações e tudo que pertence ao que não pode ser medido e nem pesado), não dispomos de um órgão responsável por fazer essa faxina. Como liberar isso? Como identificar o que deve ou não ir embora? Temos essa capacidade?

O paradoxo do desapego nos ritos: uma visão filosófica

Uma ideia discutida filosoficamente é sobre o paradoxo do desapego. Ele gira em torno da ideia de que, ao se abrir mão dos desejos, uma pessoa pode, paradoxalmente, encontrar uma maior sensação de paz, satisfação e felicidade. Isso significa que, ao deixar de lado a busca constante por determinar como as coisas devem ser ou não, pode-se experimentar uma liberdade interior e um estado de verdadeira compaixão.

O desafio do não-desejo é imenso, pois como somos movidos para o atendimento das necessidades básicas. É como se precisássemos abdicar, ainda que momentaneamente, dos pilares que nos são imanentes.

Não obstante, o incômodo que leva ao desejo do desapego, paradoxalmente, tem origem nos resquícios das necessidades que não foram atendidas. Desta forma, tenta-se desapegar de algo que é faltante, formando-se assim mais um paradoxo.

O alívio de desapegar

De certa maneira, o alívio buscado no sentimento de desapegar, responde à um chamado natural para a vida, quando precisamos seguir, encontrando novas formas e caminhos, com toda nossa história, completudes e incompletudes.

Vale ressaltar que sonhar também é imanente ao ser humano, e a perspectiva de desapegar não se relaciona com abdicar dos sonhos. Somos os grandes artistas, os criativos do planeta, sonhamos e damos significado à todas as experiências.

\”Considerando que viver é artimanha que se cultiva entre aquilo
que se enxerga e aquilo que mora no invisível, seguimos o rastro da flecha que atravessa o tempo\”. (SIMAS;RUFINO,2020, p.10)

A gratidão do agora

Alguns autores sustentam que é suficiente ser grato pelo que existe no agora, desfrutando inteiramente, como uma criança que brinca, despreocupada do que vem depois, já que o “há de vir”, virá, inexoravelmente.

Em nada diferente dos nossos ancestrais, sonhamos, registramos, nos reunimos, nos abraçamos, entregamos à luz, à Terra e, humildemente, pedimos que nos cuidem, confiando que assim seja.

O melhor dos ritos será aquele que atenda às suas demandas, seja em grupo ou só, em silêncio profundo, ou simplesmente levantando sua taça para saudar o novo ciclo.

A ritualidade, imanente à natureza humana, dá forma, significados e conexões que transcende culturas e épocas. À medida que exploramos as diferentes facetas dessa expressão ancestral, torna-se evidente que os rituais desempenham um papel vital na construção da identidade, na promoção do bem-estar emocional e na consolidação dos laços sociais. 

Ao reconhecer e celebrar a diversidade de práticas rituais, podemos ampliar nossa compreensão da complexa tessitura que constitui a experiência humana, honrando as tradições do passado enquanto moldamos os rituais do futuro.

Celia Barboza

Celia Barboza

Terapeuta Integrativa, Celia Barboza é certificada em BodyTalk Sistem, Master em Programação Neurolinguística, Consteladora, integrando outros saberes filosóficos para uma abordagem terapêutica profunda.

Saiba mais sobre mim