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  • Cabelos de Rapunzel simbolizam apego à mãe

    Ao ter fios cortados, princesa rompe vínculo com quem a aprisionava

    Atualizado em

    O conto Rapunzel foi publicado pelos irmãos Grimm em 1812 e narra a história de uma menina que foi presa em uma torre imensa sem portas e janelas por uma bruxa. Ficando, assim, sem contato com o mundo externo. Seu cabelo, nunca cortado, cresce como uma gigantesca trança na qual a bruxa subia todos os dias para ver a menina. Um dia, um príncipe passando pelo local, ouve Rapunzel cantando e se apaixona, decidindo fugir com ela. Ao enfrentar a vilã, é castigado com uma cegueira e Rapunzel tem suas tranças cortadas e é expulsa para o deserto. Mas, no final da história, a visão do príncipe é recuperada pelas lágrimas da amada, e o casal alcança o esperado final feliz.

    Para analisar este conto é importante observarmos o começo dele. No início, temos um casal estéril, mas que deseja muito um filho. É comum nos contos de fadas e nos mitos que o nascimento do herói ou da heroína seja precedido por um momento de esterilidade. Psicologicamente, isso significa que antes de um período de criatividade e atividade da consciência existe a fase na qual nada flui, com tédio, apatia, depressão e espera.

    É comum nos contos de fadas e nos mitos que o nascimento do herói ou da heroína seja precedido por um momento de esterilidade. Psicologicamente, isso significa que antes de um período de criatividade e atividade da consciência existe a fase na qual nada flui, com tédio, apatia, depressão e espera.

    A energia está acumulada no inconsciente e isso traz a sensação de vazio para a consciência.

    Ainda na história, a mulher, então, começa a desejar ardentemente o raponço – um tipo de hortaliça, parecida com a alface – que cresce no jardim de uma bruxa vizinha do casal. O marido, diante do pedido insistente da esposa, que dizia que iria morrer se não comesse as hortaliças, vai até o jardim e acaba sendo surpreendido pela bruxa. Esta, então, anuncia que haverá o nascimento da criança, mas a pede em troca do raponço. O fraco homem aceita a barganha e após o nascimento da menina, que se chama Rapunzel por causa da hortaliça, a bruxa a leva para a famosa torre escondida.

    Mãe de Rapunzel é vítima de seu próprio desejo

    Uma das características mais marcantes no feminino é a insatisfação. E quando a mulher não desenvolve traços de seu animus (arquétipo masculino presente na mulher), como a objetividade, ela se torna como a mãe de Rapunzel, que não avalia o perigo de roubar coisas e permanece sempre insatisfeita. Sua fome não tem fim.

    O típico desejo das mulheres grávidas mostra que há uma busca de algo que está faltando e que não se sabe o que é. Em algumas culturas, existe também a crença de que o desejo das grávidas atrai o destino da criança. Em Rapunzel, o desejo da mãe atraiu a bruxa, que encarcerou a menina aos doze anos.

    Doze anos, aliás, é a idade média para a primeira menstruação, momento em que a menina passa a ser mulher e ter a capacidade de gerar filhos. E com isso pode começar a ter desejo pelo sexo oposto. É nesse momento que muitas mães, inconscientemente, podem encarcerar a filha.

    Podemos supor que a mãe de Rapunzel e a bruxa são faces diferentes da mesma figura, a da Grande Mãe. Contudo, no conto, essas duas imagens não estão juntas, mas dissociadas em duas personagens, que mostram a separação do feminino em nossa sociedade ocidental. Os aspectos femininos, como a sexualidade, o desejo, a ira, a inveja e a vingança foram retirados da imagem do feminino que deveria ser puro e “santo”.

    Com isso, ao chegar à idade na qual o desejo sexual se manifesta, muitas meninas ouvem que deveriam ser uma dama, caso contrário se tornariam “fáceis”. Metaforicamente, a mãe de Rapunzel também não soube lidar com o desejo incontrolável pelos raponços e, nesse caso, deixou de se portar como uma “dama”, para ir atrás do que queria. Assim, de certa forma, ela transfere para a filha o medo que tem desse desejo enorme e mal trabalhado.

    Em psicologia é comum falarmos da mãe “devoradora” do filho homem, mas ela também pode impedir o crescimento da filha. Em Rapunzel, temos essa bruxa possessiva, que enclausura a menina, transformando-a em seu bem mais precioso.

    Bruxa simboliza mães que aprisionam filhos

    Além disso, o conto mostra algo comum que acontece quando a mulher se torna mãe. Algumas, por medo, afastam o marido do cuidado do filho, não permitindo a sua participação e julgando-o incapaz. Em Rapunzel, o pai é um homem fraco, que não consegue dizer “não” ao desejo absurdo da mulher. Podemos deduzir que a mãe na verdade despreza o masculino e quer o bebê só para si, o homem é apenas um instrumento para a satisfação de seus desejos – e não um companheiro.

    Quantas mulheres modernas não fazem isso? Quantas não depositam em seus filhos toda a sua realização e felicidade? Aquele bebê simplesmente não pode crescer e abandoná-la! Mas a bruxa do conto não é uma bruxa comum. Ela não tem inveja da beleza da menina, ela não tem ressentimento e nem quer se vingar. Pelo contrário, ela é uma mãe extremamente devotada. Boa até demais! E ser uma mãe boa demais aprisiona o filho em uma simbiose.

    Mas a bruxa do conto não é uma bruxa comum. Ela não tem inveja da beleza da menina, ela não tem ressentimento e nem quer se vingar. Pelo contrário, ela é uma mãe extremamente devotada. Boa até demais! E ser uma mãe boa demais aprisiona o filho em uma simbiose.

    Como no mito de Perséfone, vemos que o masculino pode ser visto na relação mãe e filha como um raptor, um violador, ou seja, alguém que deve ser mantido longe. O interessante é que o conto nos mostra que manter a menina escondida gerou um efeito contrário. No original, Rapunzel fica grávida do príncipe. O conto foi mudado devido à moral da época. Mas isso é extremamente comum, “prender demais” pode ter o mesmo efeito que “soltar demais”.

    Certo dia, um príncipe escuta a bela voz da menina e se apaixona. Na Mitologia Grega as sereias eram seres extremamente perigosos, cujo canto levava os homens a se afogarem. No conto “A Pequena Sereia” o príncipe também se apaixona pela voz dela. Nesta história o príncipe não é morto, mas fica bastante ferido, perdendo a sua visão. Isso mostra como a paixão é fonte de ilusões e nos deixa cegos.

    Ao cortar tranças, Rapunzel rompe vínculo com mãe

    Outro símbolo muito importante do conto são as tranças de Rapunzel. O cabelo cresce infinitamente e nunca é cortado. As tranças podem ser interpretadas como o símbolo da continuação mãe-filha e, ao cortar esse cordão simbólico, o vínculo com a mãe também é cortado e a menina pode iniciar seu processo de individuação.

    Os cabelos ainda podem ser interpretados como ideias e pensamentos muito fortes, que crescem simbolicamente e não encontram uma forma de se expressar no mundo exterior. A mulher enclausurada em um complexo materno não tem como dar vazão às suas ideias criativas, ela deve apenas viver para servir à mãe.

    Transgressão de Rapunzel faz princesa amadurecer

    O amor é um grande catalisador do processo de individuação. É ele quem impulsiona o indivíduo a querer se diferenciar. O amor do príncipe e de Rapunzel foi uma transgressão, um pecado e, como sabemos, toda transgressão leva à expulsão do paraíso. Nesse caso, foi a expulsão do paraíso materno.

    Ao ser expulsa do castelo, a vida da moça começa de fato e assim ela pode se tornar capaz de amar além das ilusões e formar a sua família. No conto original, Rapunzel vai viver sozinha no deserto para amadurecer e depois dá à luz gêmeos, ou seja, ela passa de filha à mãe.

    E só após passar um bom tempo na solidão para que possa desenvolver suas próprias capacidades internas de sobrevivência é que ela pode, então, se unir ao seu masculino. Pois já está amadurecida, independente e segura para receber esse masculino como seu companheiro de jornada no processo de individuação.

    Referências bibliográficas:

    1. CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.
    2. VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.
    3. VON FRANZ, M. L. O gato – Um conto da redenção feminina 3. Ed. Paulus. São Paulo: 2011.

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    Hellen Reis Mourão

    Hellen Reis Mourão

    É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.

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