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Okja é primeiro filme sobre exploração animal para público adulto

Apesar de incompleta, obra sensibiliza espectador e o faz repensar suas escolhas

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Okja é um filme lançado pela Netflix, que fala da exploração de animais criados para consumo, de uma perspectiva mais adulta. É uma novidade interessante, pois, em geral, até hoje, as produções que tratavam do assunto eram dirigidas às crianças e expunham o tema de forma mais infantilizada e lúdica, como em “Fuga das galinhas”, “Babe, o porquinho atrapalhado”, “A menina e o porquinho” e até mesmo “Ratatouille”.

Apesar disso, a moral desses filmes é que os animais precisam se mostrar ultraespeciais, fazer mil e uma peripécias ou até mesmo salvar humanos para que tenham seu valor como indivíduos reconhecido.

a moral desses filmes é que os animais precisam se mostrar ultraespeciais, fazer mil e uma peripécias ou até mesmo salvar humanos para que tenham seu valor como indivíduos reconhecido.

Um outro aspecto desse tipo de produção é aquele que refere-se a animais selvagens sequestrados e mantidos em cativeiro, como a sequência “Free Willy” ou ainda os incontáveis filmes envolvendo animais domesticados, como cães e gatos, considerados fofinhos e, só por isso, dignos de cuidados, carinho e respeito.

Nunca houve antes um filme voltado para um público mais adulto, com exceção de documentários específicos, que tratasse do tema de forma tão explícita, o que faz pensar que, no imaginário coletivo, a temática está ocupando um lugar mais maduro, sério e que deve ser cada vez mais considerado.

Okja: a superporca que representa a crueldade da exploração animal

O começo do filme mostra a personagem Lucy Mirando (interpretada por Tilda Swinton), dona de uma empresa que descobre, no Chile, uma nova espécie de animal: os superporcos. Ela decide recriar os bichos em laboratório e enviá-los a vários cantos do mundo, para serem criados por diferentes fazendeiros, por 10 anos. Depois desse tempo, o melhor superporco será escolhido por meio de uma competição. A obra mostra a história da fêmea Okja, que foi criada pela menina Mikha (Seo-Hyun Ahn) e seu avô. A garota precisa salvar sua superporca, que vence a competição e, com isso, fica marcada para a morte, já que a empresa de Mirando visa apenas o lucro por meio da exploração animal.

Assim, a obra expõe a falta de ética descarada da indústria e a senciência animal de forma bastante pessoal e íntima, por meio de um animal de criação, ainda que fictício. No filme, o próprio ativismo pelos direitos animais é menos caricato e abordado de forma mais justa e verdadeira, simbolizado pela FLA, a Frente de Liberação Animal que ajuda a planejar o sequestro de Okja, no intuito de salvá-la. Há uma seriedade em torno do tema, apesar do tom cômico utilizado pelo diretor Joon-Ho Bong em algumas partes.

Filme coloca espectador de frente para suas escolhas

Em Okja, há cenas importantes que podem ser aproveitadas para a reflexão do público geral, na medida em que este consegue fazer uma ponte direta com uma realidade que já existe. O animal é fictício, mas a realidade que ele revela é absolutamente concreta. Os animais tratados como propriedade; a reprodução forçada (ou artificial); a tortura física e psicológica; o caminho forçado para a morte; a separação dos filhotes; o desrespeito direto aos indivíduos que são; o cotidiano nos abatedouros, granjas, pesqueiros, etc.

Um outro ponto positivo do filme capaz de gerar reflexão é que todo esse cenário é construído pautado em uma demanda. Lucy Mirando tem investidores e um público que deseja o seu produto. São eles que permitem que o projeto se concretize, deixando claro que todo esse rastro de crueldade e injustiça vivenciado por Okja só pode ser transformado e interrompido pelo consumidor.

O grande problema é que o consumidor dos superporcos é seduzido e enganado com ideais de sustentabilidade, “naturalismo”, de um melhor custo/benefício e até mesmo do sabor dos animais. Esse é o marketing usado por Mirando para divulgar seu produto. Em contrapartida, o espectador, já familiarizado com esse discurso em seu dia a dia na forma do “abate humanitário”, dos animais “criados soltos”, das carnes orgânicas, etc. tem a oportunidade de conhecer a outra face da moeda: o lado do animal.

Certamente, há inúmeros vídeos e documentários mostrando a sordidez e a perversidade à qual são submetidos os animais de criação, mas poucos têm coragem ou interesse em assisti-los, pois o conteúdo é extremamente gráfico e explícito. No entanto, o filme Okja permitiu que o grande público pudesse entrar em contato com essa dimensão dos processos e acontecimentos que são tão invisibilizados pela mídia e tão pouco questionados pela grande maioria das pessoas. A obra evoca um aspecto intocado em suas vidas, que é o resultado de suas escolhas.

Okja simboliza todos os animais que estão na fila do abate

Okja – o animal fictício pelo qual o espectador se afeiçoa e que junto com Mikha vivencia uma relação íntima de amizade, companheirismo e cuidado – é o personagem que representa todos os outros superporcos que não terão o mesmo destino que ela. A porca faz parte de uma espécie forjada geneticamente, assim como já são os animais de criação diariamente consumidos pelo espectador.

A diferença entre Okja e o animal de criação que está agora na fila do abate é que ela pôde mostrar o valor de sua senciência e o valor de si mesma individualmente, enquanto os que estão na fila do abate já nascem com seus destinos definidos, assim como todos os outros superporcos que ficaram para trás no filme. A realidade de Okja é a realidade do animal resgatado, do animal do santuário. Os demais superporcos revelam a realidade de todos os outros que não terão essa oportunidade.

Filme instiga a refletir se você é conivente com a exploração animal

O filme tem um potencial de sensibilizar e mobilizar o espectador apenas se estas pessoas conseguirem conectar honestamente os pontos mostrados no filme com a sua realidade, trazendo para a consciência que o final aparentemente “feliz” de Okja não é o mesmo destino dos porcos, dos bois e vacas, dos bodes e cabras, dos perus, dos frangos e dos animais marinhos que consomem.

O filme oferece uma chave de abertura para o tema e toca o público disposto a refletir sobre a realidade com a qual é conivente.

Ao acreditar em informações incorretas, causamos sofrimento

O filme evoca a importância de se ser transparente e honesto, pois eventualmente a verdade vem à tona – quer queira ou não enxergá-la. Podemos observar esse aspecto em diversos momentos do filme, como na relação entre Lucy Mirando e seu público-alvo e as mentiras que são contadas em nome do lucro; na relação de Micha e o avô que a engana sobre a compra de Okja, sabendo de seu fim; quando o ativista propositalmente traduz errado as palavras de Micha, etc.

Todas essas questões geram momentos críticos ao longo do filme e o resultado das mentiras é sempre catastrófico. O preço dessas decisões é o sofrimento e a violação da integridade de inocentes e mostra que, ao se cair na real, é preciso mudar as estratégias.

A ponte que podemos fazer com nossa realidade é que, ao sermos enganados pela mídia, ao confiarmos cegamente em informações distorcidas, geramos o sofrimento de muita gente humana e não-humana.

Do ponto de vista do veganismo, filme passa mensagem incompleta

Sob a ótica do veganismo, o filme passa uma mensagem incompleta e especista, isto é, foca em uma única espécie animal como digna de justiça, já que a protagonista consome outros animais sem qualquer problema, revelando uma contradição na mensagem do filme.

É interessante pensar que precisamos de um animal fictício para nos fazer olhar para a realidade de outros animais de verdade, que estão padecendo sob a manutenção de um sistema que os explora sem qualquer reflexão ética. Por que será que somos mais suscetíveis à fantasia do que à realidade? Por será que o personagem ficcional tem mais poder de nos mobilizar para uma possível mudança do que os milhões de personagens da vida real?

O foco em um único animal também é passível de crítica sob a ótica vegana, já que traz uma ideia de que apenas Okja é importante – por ser humanizada e mostrar o alcance de sua consciência e inteligência, como se fosse diferente dos milhares de outros superporcos que não tiveram a mesma oportunidade. De fato, ela não é. Entretanto, devemos considerar que é próprio de uma obra de arte ter um protagonista, um herói, um representante capaz de gerar identificação com o espectador, sensibilizá-lo, mobilizá-lo. Nesse sentido, compreende-se que esse é o propósito da arte, diferentemente do propósito de um documentário que se imbui de explicar, expor e informar fatos de maneira mais objetiva, como por exemplo “Terráqueos”, “A Carne é Fraca”, “Cowspiracy” e “Peaceful Kingdom”.

Conclusão

Considerando que é um filme comercial sem nenhum propósito de fazer propaganda ou ser bandeira para o veganismo, a obra tem seu valor e merece ser assistida e refletida, apesar de suas incoerências e contradições. Que Okja seja o primeiro de muitos filmes comerciais que abordam o assunto, direcionado para o público adulto, apresentando com maturidade e seriedade a questão dos animais e que mais e mais pessoas possam ser mobilizadas por esse questionamento que é tão importante em tantos aspectos.

Meu desejo é que Okja possa marcar o início da discussão sobre a senciência, sobre animais como indivíduos de valor inerente e, principalmente, sobre a comodificação desses indivíduos que são tratados como propriedade e mercadoria. Muitas pessoas ainda são leigas a esse respeito e não se interessam ou até mesmo defendem-se do material trazido pelos documentários, pois a realidade é mesmo muito dura e difícil de ser encarada. Okja, ainda que de maneira parcial, aproxima-nos da realidade perversa de nossa relação com as outras espécies animais, que é fruto de nossas escolhas.

Espero que este filme seja uma oportunidade de alinhamento mais coerente entre aquilo pensamos e aquilo que praticamos diariamente.

Thaís Khoury

Thaís Khoury

É psicóloga clínica e utiliza a interpretação dos sonhos, a calatonia e a expressão criativa em seus atendimentos. Também é vegana e fundadora do Veganíssimo, empresa que produz alimentos 100% vegetais.

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