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  • Pocahontas: desapego afetivo e transformação

    Baseado em história real, conto ensina a importância de deixar ir

    Atualizado em

    Pocahontas é um conto de fadas diferente do padrão, com uma heroína mais humana e amadurecida. Esta índia é o símbolo da mulher que iniciou em seu processo de individuação: o de tornar-se ela mesma. Tendo sido uma personagem real, sua trajetória deu origem a muitas lendas. Tudo que se sabe sobre ela foi transmitido oralmente de geração em geração, de modo que sua real história é controversa até hoje. Sua vida se transformou em um mito romântico nos séculos seguintes à sua morte, mito este que foi transformado em um desenho animado da Disney, levando no título o próprio nome da índia.

    Na lenda original, segundo o Wikipedia, ela era uma índia powhatan que se casou com o inglês John Rolfe, tornando-se uma celebridade ao fim de sua vida. Era filha de Wahunsunacock (conhecido também como Powhatan), que governava uma área que abrangia quase todas as tribos do litoral do estado da Virgínia. Seus verdadeiros nomes eram Matoaka e Amonute; “Pocahontas” era um apelido de infância.

    Segundo a história, ela salvou o inglês John Smith, que seria executado pelo seu pai em 1607. Nessa época, Pocahontas teria apenas entre dez e onze anos de idade, ao tempo em que Smith era um homem de meia idade, com cabelos longos e castanhos, e barba. Ele era um dos líderes colonos e, à época, fora raptado por caçadores Powhatans. Ele possivelmente seria morto, mas Pocahontas interveio, conseguindo convencer o pai de que a morte de John Smith atrairia o ódio dos colonos.

    Conflitos internos e projeção do inconsciente

    O filme da Disney, de 1995, narra o embarque de um navio de colonos britânicos da Companhia da Virgínia para o “Novo Mundo”, em 1607. A bordo dele estão o capitão John Smith e o líder governador Ratcliffe, que acredita que os nativos americanos estão escondendo uma vasta coleção de ouro e por isso procura ganhar esse tesouro por conta própria. Entre estes nativos da tribo local, conhecemos Pocahontas, a filha do chefe Powhatan, que discute a possibilidade de a heroína se casar com Kocoum. Este jovem é um bravo guerreiro que, no entanto, ela vê como muito “sério” em comparação com sua personalidade alegre e espirituosa.

    Assim, logo no início do filme, Pocahontas aparece já questionando o sentido de sua própria vida e qual caminho deve seguir: o casamento arranjado com Kocoum ou a espera pelo verdadeiro amor. Essa dúvida entre seguir as tradições dos pais e da sociedade ou obedecer aos anseios da alma desencadeia um verdadeiro conflito interno para a índia, diferentemente do que ocorre com a maioria das heroínas clássicas dos contos de fadas.

    Essa dúvida entre seguir as tradições dos pais e da sociedade ou obedecer aos anseios da alma desencadeia um verdadeiro conflito interno para a índia, diferentemente do que ocorre com a maioria das heroínas clássicas dos contos de fadas.

    No decorrer da trama, a vontade de compreender um sonho recorrente faz com que a moça, juntamente com seus amigos – o guaxinim Meeko e o beija-flor Flit -, visite o espírito ancestral da Vovó Willow, que habita um salgueiro. Em resposta, a árvore a aconselha justamente a ouvir os espíritos, ou seja, ouvir o que o inconsciente está lhe dizendo. A árvore tem um formato fálico, mas também possui em si a seiva da vida, simbolizando os princípios masculinos e femininos – logo, uma totalidade. E Vovó Willow, como um espírito ancestral, simboliza o aspecto do inconsciente coletivo que une todos os dilemas e conflitos já vividos pelos seres humanos.

    Pocahontas e John Smith: opostos que se complementam

    O navio britânico chega ao novo mundo trazendo o inglês John Smith. O rapaz e Pocahontas se encontram, ao tempo em que uma paixão incontrolável acende entre ambos. Mas a despeito dessa paixão, os mundos dos dois são muito diferentes um do outro: Pocahontas é uma mulher ligada à natureza, enquanto que John pertence à civilização e deseja explorar a natureza, em busca de ouro e pedras preciosas.

    Na psicologia analítica de Carl Jung, essa ligação amorosa existe e nos impulsiona à união com o outro externo – no caso, outra pessoa – e interno, que seria o nosso “eu interior”.

    Na psicologia analítica de Carl Jung, essa ligação amorosa existe e nos impulsiona à união com o outro externo – no caso, outra pessoa – e interno, que seria o nosso “eu interior”.

    Apaixonamo-nos e convivemos com esse outro, que possui características complementares à nossa personalidade, mas que também está esperando, dentro de nós, por uma expressão no mundo externo. É uma união com a nossa essência mais profunda, e Pocahontas anseia por esse encontro.

    No filme, observamos o desenvolvimento daquilo que Jung denominou arquétipo da conjunção – arquétipo que se refere à união e a separação das polaridades opostas. Na união, há o desejo e a busca incessante daquilo que mais se quer, e a índia deseja ardentemente um amor que a leve à transcendência, a um caminho diferente do habitual e que expanda seus horizontes. John Smith, de fato, lhe mostra um novo mundo, uma perspectiva diferente da sua. Ele viajou e conheceu outros lugares, sem apegar-se a nada, trazendo a ela um pouco de suas experiências. O mesmo ocorre ele – Pocahontas o traz uma dimensão de sentimento que não havia antes em sua personalidade, uma sensibilidade que o leva a observar e valorizar a natureza. Assim, John começa a sentir uma forte necessidade de estabelecer um laço afetivo com ela, a ponto de querer desistir de voltar para sua terra e passar a viver na tribo.

    Já na separação, há a necessidade de deixar aquilo que passou, para que possa haver um novo aprendizado. Ao mesmo tempo em que o amor conflituoso dos dois se inicia, surge uma hostilidade que leva à guerra entre os índios e os britânicos, culminando com a morte do guerreiro Kocoum, o pretendente de Pocahontas. Essa morte pode ser interpretada de forma simbólica, mostrando que agora a personagem pode se libertar do peso da obrigação de seguir as tradições da tribo e de seus ancestrais, e, assim, seguir o caminho que a sua alma lhe indicar.

    Além disso, a guerra e o clima de agressividade entre os dois povos mostra o quão difícil é o dilema experimentado por Pocahontas. Ela tem certeza de que quer ficar com John Smith, mas um evento em que ele é baleado faz com que precise voltar à sua terra para não morrer. E, dessa forma, a jovem deve escolher se segue com seu amor ou se permanece com a tribo, uma vez que ela será a líder quando seu pai vier a falecer.

    Ela tem certeza de que quer ficar com John Smith, mas um evento em que ele é baleado faz com que precise voltar à sua terra para não morrer. E, dessa forma, a jovem deve escolher se segue com seu amor ou se permanece com a tribo, uma vez que ela será a líder quando seu pai vier a falecer.

    É o amor cumprindo o seu papel de catalisador do processo de desenvolvimento da personalidade, alternando a união e a separação como etapas para a transformação.

    Presença simbólica da mãe a dissocia de Pocahontas

    É importante notar que Pocahontas não tem mãe, mas carrega consigo um colar que pertenceu a ela. Carregar algo que substitui a boa mãe é um tema bastante comum em contos de fadas. Em “A Bela Wasilisa”, a heroína carrega consigo uma boneca que a auxilia em momentos difíceis. Em “Cinderela”, vimos que uma árvore cresce no túmulo da mãe da Gata Borralheira, após sua morte, auxiliando a princesa ao longo da história. A morte da mãe nos contos de fadas significa que a menina toma consciência de que não deve mais se identificar com ela, ainda que a relação seja positiva. É o início do processo de individuação. O artefato que a substitui simboliza a mais profunda essência da figura materna.

    A superação de um amor impossível

    Pocahontas então percebe que esse amor profundo por John Smith não sobreviveria, pois há um abismo entre a realidade de ambos. Esse amor só poderá permanecer vivo na separação, o que representa uma contradição necessária – o estar junto, porém separados. Ao se deparar com esse dilema, ela faz um sacrifício inevitável para permitir a busca de algo que está além e mostrar o que virá mais adiante. Com isso, ela valoriza a sua terra, a sua tribo e também o amor que desenvolveu por John. Ela não nega, nem reprime o que sente, apenas enfrenta a situação.

    Com isso, o conto nos inspira a seguir pelo caminho da compreensão, quando as diferenças entre dois amantes parecem falar mais alto. Ao aceitarmos a impossibilidade de um relacionamento amoroso, confirmamos o quanto esse amor nos transformou, a ponto de nos abrirmos a tudo de mais extraordinário que está por vir.

    Referências bibliográficas:

    1. VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.
    2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pocahontas. Acesso em 12-01-2015.

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    Hellen Reis Mourão

    Hellen Reis Mourão

    É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.

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