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Identificação com mãe deve morrer para que mulher se desenvolva

Princesas de contos de fadas mostram que fracassos proporcionam relações verdadeiras

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Em diversos contos de fadas, principalmente entre os mais famosos, as princesas caem em um sono semelhante à morte, como é o caso de Branca de Neve e a Bela Adormecida, por exemplo.

Este tema do sono e da morte é muito comum nas jornadas das heroínas e tem um significado bastante profundo para a compreensão da psique feminina e a sua jornada de individuação.

Este tema do sono e da morte é muito comum nas jornadas das heroínas e tem um significado bastante profundo para a compreensão da psique feminina e a sua jornada de individuação.

O tema do sono que se assemelha à morte é encontrado na mitologia, segundo a psicoterapeuta analítica Marie-Louise Von Franz.

No mito de Coré e Deméter, por exemplo, o Deus Hades sequestra, movido por uma forte paixão, a bela Coré, que passa por uma morte simbólica e se torna a rainha do submundo e do mundo dos mortos.

Já no mito de Eros e Psiquê, a heroína é perseguida por sua futura sogra, Afrodite, e cai no sono da morte após seu encontro com Perséfone.

Em Branca de Neve e Bela Adormecida, as madrastas perseguem as princesas, movidas por ciúmes, vingança e inveja.

Neste último conto, a fada Malévola amaldiçoa a princesa, pois foi esquecida e renegada – assim como Afrodite, que também estava sendo deixada de ser cultuada em função da beleza de Psiquê.

Desenvolvimento da mulher passa por aspectos sombrios, como a morte

De acordo com Von Franz, a deusa não tolera uma rival humana. Isso significa que a psique feminina possui uma beleza que faz frente à deusa, ou seja, que faz frente ao arquétipo da Grande Mãe.

Ao mesmo tempo, essa perseguição por inveja – que costumamos ver nas histórias – proporciona o desenvolvimento da psique feminina e do próprio arquétipo da Grande Mãe.

Esse arquétipo do grande feminino pode aparecer de diversas formas, como vemos na mitologia e nos contos de fadas. As deusas, as fadas e as bruxas, por exemplo, são aspectos de uma unidade feminina.

E a mulher precisa conhecer e se relacionar com todos esses aspectos do feminino para encontrar a completude, incluindo o lado terrível, simbolizado pela bruxa. E esse lado terrível é justamente a morte.

Em termos psicológicos, significa que o desenvolvimento da personalidade feminina passa por aspectos sombrios da Grande Mãe. São eles que impulsionam a heroína rumo ao seu processo de individuação.

Figura da mãe terrível impulsiona mulheres a se desenvolverem

O tema que envolve a perseguição da mãe ou da madrasta terrível e a morte da heroína virgem, é conceituado por Erich Neumann como “A Morte e a Virgem”. Ele aponta este como um fenômeno básico da psicologia feminina matriarcal.

Para que entenda melhor, basta pensar que o essencial na psicologia feminina refere-se à relação mãe e filha e à relação primordial de identificação entre elas. De acordo com Von Franz, tanto a mãe quanto filha tendem a projetar o “self feminino” uma na outra.

Ou seja, enquanto a filha projeta aquilo que quer ser na mãe, a mãe projeta na filha aquilo que poderia ter sido e suas qualidades e características não desenvolvidas.

tanto a mãe quanto filha tendem a projetar o “self feminino” uma na outra. Ou seja, enquanto a filha projeta aquilo que quer ser na mãe, a mãe projeta na filha aquilo que poderia ter sido e suas qualidades e características não desenvolvidas.

Essa projeção, pelo lado positivo, traz segurança à mulher no que diz respeito à sua feminilidade e à vantagem de uma inteireza e completude naturais que os homens não possuem.

No entanto, conforme aponta Von Franz, se não é justo para a mulher copiar o homem, é igualmente ruim que ela seja por demais unilateralmente feminina, pois corre o risco de ficar à margem da vida e ser incapaz de enfrentá-la.

Por essa razão, a identificação mãe e filha e o aspecto virginal e de donzela precisam morrer, para que a mulher possa desenvolver os aspectos masculinos positivos de sua psique.

É nesse momento, nessa urgência de desenvolvimento psíquico, que entra a figura da mãe terrível, que tenta destruir a psique feminina emergente, mas ao mesmo tempo a impulsiona ao encontro com a morte e com seu aspecto masculino.

Complexo materno faz com que mulheres não enxerguem a pessoa parceira

Por isso, conhecer os ciclos de morte e vida é vital para o desenvolvimento psicológico da mulher. No mito de Psiquê e nos contos Branca de Neve e Bela Adormecida, o tema da morte da donzela ocupa a posição central, mesmo parecendo uma mera vingança do feminino.

Para a mulher moderna esse é um desenvolvimento crucial, pois a relação com a mãe é a sua forma de se relacionar.

É a primeira relação na qual a mulher se espelha. Por isso, todas as vezes que houver a necessidade de um desenvolvimento psicológico e uma ampliação de consciência, esse conflito com a figura da Grande Mãe retornará.

A relação com a mãe, para a mulher, é de igualdade, pela semelhança entre os sexos. Por isso, a mulher busca a igualdade em suas relações posteriores.

Ela anseia – de forma inconsciente – por essa relação primal que conheceu na infância. A necessidade de ser compreendida, vista como semelhante e aceita como é vem desse desejo infantil.

O que deve morrer, então, é esse desejo infantil, esse desejo de uma ligação de igualdade, principalmente com o masculino, pois o masculino se trata de uma instância diferente.

Se esse desejo não morre, a mulher nunca irá conhecer o parceiro como ele é e também seu masculino interior. Essas imagens estarão sempre contaminadas pelo complexo materno.

Fracassos podem proporcionar relações mais honestas e verdadeiras

Porém, paradoxalmente, essa morte se dá por uma espécie de fracasso. No mito Eros e Psiquê, após cumprir todas as provas e mesmo sendo orientada pela torre, Psiquê abre a caixa com o creme de beleza imortal de Perséfone.

Ao fazer isso, cai em um sono semelhante à morte. A princípio, parece que Psiquê fracassou. O mesmo acontece com Branca de Neve, que por três vezes sucumbe à bruxa má, mesmo sendo alertada pelos anões.

Nas histórias, as heroínas sucumbem à mãe terrível. Com isso, Psiquê e Branca de Neve passam por um processo de desenvolvimento de seus aspectos masculinos, para no final perderem sua objetividade e bom senso conquistados a duras penas. No entanto, é esse fracasso que as levam à vitória.

Isso significa que por mais que a mulher desenvolva seus aspectos masculinos (e deve, por sinal), ela nunca será semelhante ao homem.

Nos contos masculinos, o herói mata o dragão, a bruxa, ou qualquer figura malévola, pois ele precisa se afastar das garras regressivas da mãe. Por isso, todo o homem luta durante sua vida com essa figura interna, pois a relação com ela é uma relação de dessemelhança.

O fracasso aparente das heroínas mostra que elas não são símbolos de uma psique masculina, mas sim feminina.

A morte e a entrega à Grande Mãe terrível, como fracasso, simbolizam que a mulher entra em um estágio do feminino que vai além da relação com a mãe pessoal.

Ela também sucumbirá à mãe arquetípica, um modelo de feminino transpessoal, no qual ela encontra a fonte de uma feminilidade despida de padrões culturais e de família.

Assim, então, se diferencia como mulher e se diferencia do masculino, podendo chegar a uma relação (interna e externa) mais honesta e mais verdadeira.

Referências bibliográficas:

  1. HARDING, E. Os Mistérios da Mulher. São Paulo, Paulus: 2007.
  2. NEUMANN, E. O medo do feminino e outros ensaios sobre a psicologia feminina. São Paulo, Paulus: 2000.
  3. NEUMANN, E. Amor e Psique – Uma interpretação psicológica do conto de Apuléio. São Paulo, Cultrix: 2017.
  4. VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.
Hellen Reis Mourão

Hellen Reis Mourão

É analista Junguiana e especialista em Mitologia e Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de Psicologia Analítica em SP e RJ.

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