Pesquisar
Loading...

Seja aliado do seu corpo

Psicanalista fala sobre doenças da beleza e relação com silhueta

Atualizado em

Autora do livro “Com que corpo eu vou?” (Pallas Editora), a psicanalista Joana de Vilhena Novaes coloca o corpo na mira dos holofotes, do ponto de vista estético, para explicar como a relação entre físico e mente varia de acordo com a classe social e também com a região que uma pessoa mora. Para a especialista, que é coordenadora do Núcleo de Estudos de Doenças da Beleza, do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS), na PUC-Rio, aparência bem cuidada é sinal de adequação social e culto ao corpo é um fenômeno mundial, porém ambos podem desencadear transtornos psicológicos gravíssimos.

“Em uma cultura em que a magreza é altamente valorizada, o preconceito em relação à gordura é tão grande que qualquer mínimo desvio no tocante à estética vira uma fonte não só de vergonha, mas também de preconceito”, alerta a psicanalista.

Na entrevista abaixo, Joana explica por que a gordura geralmente é vista como algo desagradável, de que forma é possível identificar um paciente que sofre de algum transtorno da beleza e como algumas pessoas demonstram ter uma relação muito madura com seus corpos, ainda que acima do peso ideal.

O título do seu livro é “Com que corpo eu vou?”. Por que essa associação literal do corpo a uma peça de roupa?

Joana de Vilhena Novaes: O corpo, em uma sociedade de espetáculo como a nossa, deixa de assumir um papel de apenas acessório e acaba sendo uma forma de adestramento, afinal, somos socializados através dele. A forma como sentamos até a estética que almejamos são frutos de costumes que são passados para nós.

Especificamente falando, o corpo carioca sempre me interessou e é o tema central do livro. Eu sempre quis saber qual era o uso que as pessoas do Rio de Janeiro faziam dos próprios corpos, pois acho que isso na cidade é um capital diferenciado quando comparado a outros lugares. Aqui as pessoas investem tempo e dinheiro em seus corpos, com o uso de cremes, dietas, cirurgias, etc. No RJ, a roupa que você veste é determinada pela estética que possui, e não o contrário. A vestimenta vira um apêndice em relação ao corpo, que se você comparar com o do europeu ou mesmo com o do americano, percebe que aqui é uma plataforma para exibição e representação. A roupa não serve para disfarçar pequenas imperfeições e defeitos, não é um acessório em si. Ela serve pra revelar o corpo. Por isso o título do livro.

O que motivou você a escrever sobre um assunto como esse?

JVN: A minha primeira pesquisa em relação a isso foi para observar se era apenas eu que achava chato malhar – eu malhava e me alimentava saudavelmente, mas achava chato! – ou se as minhas colegas e até alunas também pensavam da mesma forma. Queria investigar e saber se meus pares se sentiam, como eu, oprimidos e com essa obrigação de frequentar uma academia. Hoje em dia, malhar e fazer dieta equivale a tomar banho e escovar os dentes – são práticas de asseio. Consequentemente, se você não malha nem faz nada disso, é visto como um desleixado.

Então, conforme fui avançando em minhas pesquisas, me deparei com outras práticas, chegando ao ponto de entrevistar mulheres que iam fazer cirurgia bariátrica – daí minha conclusão e a premissa da qual eu sempre parto, que a gordura é a forma mais representativa de feiura atualmente e pode levar até a uma exclusão social.

Você fala sobre como mulheres de classe baixa demonstram ter uma relação mais saudável com o próprio corpo, de aceitação e adaptação. Por que isso acontece?

JVN: Porque a relação com a comida é outra. A fartura, nessa camada da sociedade, ainda está associada à ausência de miséria. Nas classes populares, há um “apreço à carne”, ou seja, o excesso de comida é visto como uma dádiva e como algo que pode ser oferecido. A fartura é um valor nestas classes – consequentemente, a gordura é significada de outra forma.

Nas classes populares, há um “apreço à carne”, ou seja, o excesso de comida é visto como uma dádiva e como algo que pode ser oferecido. A fartura é um valor nestas classes – consequentemente, a gordura é significada de outra forma.

Isso tudo está intimamente associado a um passado ainda recente de miséria e desnutrição. Em minhas pesquisas e entrevistas, pessoas de classe baixa me revelaram, por exemplo, que a limitação mais dolorosa é a de não poder dar comida a um filho, nem que seja um biscoito recheado ou alguma guloseima. Então, é obvio que a questão da privação alimentar não vai ser valorizada e nem vista como disciplina ou uma boa característica de ordem moral, mas sim como miséria e pobreza.

Assim, vemos mulheres de classes populares que, embora muitas vezes sejam obesas, expõem a própria gordura. Apesar de se perceberem gordas, elas mostram esse corpo livremente e o usam de forma muito mais saudável, sem se restringir ou se limitar. Elas criativamente se apropriam de uma série de alternativas que realçam a beleza, já que não têm essa variável do “poder aquisitivo” para lançar mão das mesmas práticas estéticas caras que a mulher de classe média-alta utiliza. As mulheres de classe baixa, inclusive, não deixam de achar que a possibilidade de ascensão social delas se dará através da aparência – a diferença é que elas não se sentem aprisionadas no próprio corpo.

Ocorre o mesmo com mulheres de camadas sociais mais elevadas? Por que essa distinção?

JVN: Não, nas classes médias e altas você vê uma relação muito mais dramática com o corpo. Neste meio, o gordo é como uma fonte de escárnio e alvo de olhares de deboche, já que “ninguém vai gostar de gordo”. Isso acontece porque há uma questão moral intrínseca, de disciplina, privação e caráter. Mulheres das camadas mais altas, ao não se perceberem enquadradas nos padrões, ficam engessadas. Não se percebem podendo namorar, ir à praia ou exibir esse corpo, em qualquer situação. Para elas, é como se a vida não pudesse começar se não tiverem a estética que é padrão: jovem e magra, com a musculatura aparente. É um modelo que faz com que a pessoa se sinta em dívida, insuficiente. Enquanto isso, a vida passa e essas pessoas ficam confinadas em casa, querendo ir à praia, por exemplo, sem poder…

Por que a gordura, para essa parcela da sociedade, remete à feiura?

JVN: Porque a gordura está associada a um significado mais amplo chamado de “moralização da beleza”, no qual você atribui ao excesso de peso, especificamente, um problema de caráter. De certa forma, tem relação com a máxima “o trabalho dignifica o homem” – como o corpo é uma forma importantíssima de investimento na cultura atual, os cuidados com ele, que passam pela disciplina e pela privação, são sinônimos de uma boa moral. Resumindo: quando a comida vira uma facilidade e deixa de ser um bem escasso, a magreza vira um dever. Quando a comida, por outro lado, era uma dificuldade e um bem valiosíssimo, a estética padrão era mais gorda.

JVN: Entre as moças que administram perfis fitness, há muitas que já enfrentaram a obesidade, o que me admira muito, porque é um longo processo. Nesse caso, elas passaram a comer alimentos saudáveis, ao invés de apenas alimentarem o corpo com gordura. Além disso, em vez de terem vergonha de expor a própria gordura no passado, participam e convocam pessoas que querem ou precisam emagrecer para fazer o mesmo. É um trabalho motivacional feito por pessoas que se tornam modelos morais a serem seguidos, portanto respeito e acho muito interessante. Quando você torna público o seu processo de emagrecimento, compartilhando algumas receitas, por exemplo, acho válido. As redes sociais inegavelmente são uma forma de sociabilidade contemporânea, portanto esse tipo de conteúdo ajuda, efetivamente, muitas pessoas.

O que você acha de campanhas que ressaltam a beleza real das pessoas, como mulheres que enfrentam ou enfrentaram o câncer, pessoas acima do peso, dentre outras?

JVN: Acho que temos uma grande responsabilidade de criar uma massa crítica na juventude e na infância, através de um trabalho educativo, mostrando a esses jovens que existem outros modelos de beleza com os quais eles podem se identificar. É fundamental mostrar que o valor pessoal não deve estar reduzido a ter 1,80m, 50kg e olhos azuis. Acredito que há uma série de coisas que podem ser feitas com o próprio corpo e principalmente na vida, para que a valorização e o sucesso sejam alcançados, basta evidenciar essas opções para as pessoas.

Já em relação às sequelas físicas, decorrentes de acidentes ou doenças, não concordo com a exaltação da beleza. Deparei-me algumas vezes com situações em que pessoas com alguma limitação física ganhavam destaque por conta de uma suposta “beleza exterior”, por terem sobrevivido a um revés da vida. Eu entendo a intenção, mas acho que se alguém quer apresentar à população uma forma de valorização de quem ganhou visibilidade social, isso não deve ser um elogio à estética, negando uma deficiência. Aquele é um corpo deficiente e tem uma limitação, mas nem por isso o dono deste corpo não é uma pessoa admirável, é claro.

Na sociedade contemporânea, me parece que a única forma de elogiar é classificar alguém como belo, e acho que isso é um desserviço, que não ajuda a transformar o olhar das pessoas. Apenas reforça, pelo contrário, a ideia de que a única coisa admirável em alguém é a sua estética.

Na sociedade contemporânea, me parece que a única forma de elogiar é classificar alguém como belo, e acho que isso é um desserviço, que não ajuda a transformar o olhar das pessoas. Apenas reforça, pelo contrário, a ideia de que a única coisa admirável em alguém é a sua estética.

Pessoas são incríveis e admiráveis não necessariamente por seu físico, mas por várias outras coisas que elas fazem com a própria vida ou em prol de uma sociedade. A ativista Malala Yousafzai, de 17 anos, é um exemplo. Ela lutava pelo direito das meninas à educação no Paquistão e foi baleada por isso, mas alcançou uma enorme visibilidade ao ganhar o Nobel da Paz. Hoje em dia ela é objeto de admiração, e não é por isso que deve ser considerada linda.

Até que ponto a preocupação com o próprio corpo pode ser considerada aceitável e como perceber que alguém ultrapassou esse limite?

JVN: Uma maneira de perceber essa ultrapassagem é quando o comportamento se torna “engessado”, limitado, ou quando os cuidados com a aparência começam a interferir em outras rotinas – trabalho, amor, família etc. Pessoas com esse tipo de transtorno restringem em grande medida os espaços que frequentam, evitando lugares que apresentem algum “risco”, como elas costumam chamar. No entanto, no caso dos transtornos, a princípio, o sujeito não se percebe tendo algo de errado. Normalmente os profissionais de saúde contam com pessoas do convívio do paciente, que são as primeiras a identificarem sinais de um problema. Então, o paciente é levado à clínica, sentindo-se contrariado e resistindo na maior parte das vezes, para dar início a um tratamento cuidadoso e gradativo com medicamentos e nutrição adequados.

Para que alguém busque ajuda por conta própria, normalmente precisa estar com o quadro clínico muito avançado, no sentido de sofrimento. No entanto, algumas perguntas podem ajudar pessoas a observarem mais atentamente se os cuidados com a beleza estão restringindo a sua vida de uma maneira mais ampla:

  • Os cuidados com a beleza me impedem de me divertir ou trabalhar?
  • Que espaço isso ocupa na minha vida cotidiana?
  • Quantas horas do dia eu dedico ao cuidado com a minha aparência?
  • Quantas vezes por dia eu penso sobre este assunto?
  • Em que nível as insatisfações com a aparência me incomodam?

As respostas podem promover um trabalho reflexivo e até mesmo comparativo, em que a pessoa contraponha o seu dia a dia com as rotinas de amigos e perceba se está exagerando.

No que consistem distúrbios da beleza como anorexia, vigorexia e ortorexia, por exemplo?

JVN: A vigorexia, também chamada de Transtorno de Adonis, acomete muito o público homossexual masculino. Esse distúrbio faz com que a pessoa se sinta mirrada e magra demais em relação a outras. É diametralmente oposta à anorexia em termos de distorção da imagem, já que o objetivo é ganhar músculos, enquanto pessoas anoréxicas buscam emagrecer ao máximo. Já a ortorexia é a obsessão contemporânea pela procedência dos alimentos, em que tudo precisa ser orgânico, o que envolve a questão dos animais e do sofrimento, e muitas vezes se combina com o comportamento chamado de “eco histérico”, que valoriza e consome apenas o que é ecologicamente correto.

No blog “A Saúde Simples”, a autora Ariela Bello diz ter passado por alguns transtornos alimentares e afirma que enquanto alguns se veem de modo excessivamente crítico, outros têm uma percepção mais segura da própria aparência e do que querem para si mesmos. Como podemos ser mais seguros com a aparência?

JVN: É complicado, porque sempre precisamos da aprovação alheia para nos sentir amados, ainda que esse outro seja simbolizado por nossos pais ou pessoas que cuidam de nós, pois aprovação significa reconhecimento. Do ponto de vista psicanalítico, você não ser reconhecido equivale a uma invisibilidade social, que leva a um tipo de sofrimento incontestável. Sem esse olhar que reconhece e admira, a pessoa pode cair em uma depressão profunda ou desenvolver patologias muito graves. Toda cultura tem seus sintomas sociais, e a que nós vivemos, em geral, fomenta esse tipo de sintoma, em que cada grama a mais no peso desperta um sentimento de culpa, e a valorização da disciplina leva a rituais obsessivos de beleza. Claro que há pessoas que aderem em menor ou maior nível, que problematizam, resistem e contestam. Porém, em algum nível, elas precisarão de aprovação, que poderão buscar em um nicho ou grupo de pessoas. É uma forma saudável de procurar por valorização pessoal.

Ariela e seu corpo: união e superação

A médica Ariela Bello, autora do blog “A Saúde Simples”, passou por uma infância conturbada por causa da própria aparência, o que a fez lidar com uma autoestima baixa e vários transtornos alimentares. Hoje, também coaching de saúde, Ariela ajuda pessoas a se sentirem melhores consigo mesmas, a partir de um reconhecimento pessoal das próprias qualidades, que ultrapassam características físicas.

“Já me senti inadequada diversas vezes. Durante toda a infância fui uma criança bem gordinha, e a discriminação teve início em minha própria casa e depois ocorreu na escola. Cresci ouvindo que meu corpo era diferente, que eu era inadequada e que precisava fazer algo para me encaixar no padrão. O resultado de todos esses incentivos negativos foi o desenvolvimento de transtornos alimentares e de uma baixíssima autoestima, que me custaram muito tempo de cuidados e de aprendizado para melhorar. Em resumo, viver num ambiente em que a aparência e o corpo são vistos como medidores mais importantes do valor de alguém, e ser ensinada a acreditar nisso, geraram uma experiência cercada de discriminação e com efeitos bastante nocivos. Por isso, o mais importante é ter em mente que a forma com que nos enxergamos é uma escolha, e que podemos exercitar um olhar novo sobre nós mesmos – revisitando as crenças que temos em relação ao nosso corpo, reavaliando nossos objetivos, abandonando fontes de julgamentos cruéis e motivações negativas, modificando a forma com que falamos sobre nós mesmos e sobre as outras pessoas e nos cercando de inspirações positivas. Quando compreendemos que o nosso valor está muito além do corpo, e que a beleza é um conceito subjetivo e variável, ganhamos o poder de nos apreciar por nossas habilidades, experiências, conhecimento, particularidades e, até mesmo, nossas falhas”, conclui Ariela.

Personare

Personare

A equipe Personare é formada por pessoas que estão em processo constante de conhecimento sobre si mesmas, sobre o mundo e sobre as relações humanas. Compartilhamos aqui conteúdos apurados junto aos nossos mais de 100 especialistas em diferentes áreas holísticas, como Astrologia, Tarot, Numerologia e Terapias.

Saiba mais sobre mim