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Confissões de uma mulher de verdade

Uma crônica para estimular a gratidão pela vida feminina

Atualizado em

Sou uma menina assustada. A vida chegou depressa demais. Eu gostava de desenhar e de brincar com meu urso, mas o corpo veio e logo tomou forma de moça empinada, brilhando para os olhares dos garotos. Vi-me princesa, como sempre havia imaginado. Entendia de combinação de roupa, sabia esconder as marquinhas do meu rosto. Ah, eu sabia também que quando eu virava a cabecinha para o lado e sorria, os garotos me tratavam melhor. Aprendi a tirar os pêlos da sobrancelha, a manter as unhas e os cabelos coloridos. Certamente, eu seria uma profissional bem sucedida, passaria um tempo no exterior… E, casamento, filhos… ah, só depois dos 30, quando a carreira estivesse mais consolidada. Eu não deixaria homem nenhum me dominar. Era dona do mundo, linda, desejada, adorava balada e sabia mesmo como conduzir uma conversa. Ah, os homens… sempre tão previsíveis!

Depois eu gostei de um moço. Ele era tão, tão… na verdade, hoje acho até que ele era bobo demais. Mas na época, ah, na época, ele era estiloso, sabe? Tinha um cabelo, daqueles que caem no rosto. E também tinha um alargador nas orelhas… nossa, lindo! Mas o que eu mais gostava mesmo era o jeito de filósofo dele. Juntos, íamos mudar o mundo. Falávamos sobre Foucalt, Freud, Marx, criticávamos os engravatados, os acomodados ao sistema… Eu tinha a força de uma leoa. De uma manada inteira de búfalos. A vida estava ali, nas minhas mãos, acontecendo. O mundo era meu, eu o desenhava.

Aos poucos, o príncipe foi virando sapo, algo bem típico dos contos de fadas modernos. A menina que desenhava o mundo perdeu o lápis e a leoa virou uma gatinha acuada, que não sabia mais caçar. A profissão, antes um sonho de realização, tornara-se uma válvula de escape compulsiva. E lá estava eu a representar um papel vazio de mulher superpoderosa, aquela que dá conta.

O amor era mais um desses palcos onde eu encenava um papel meio sem alma. Afinal, se eu amasse demais, cairia, como já acontecera. Ingenuidade de novo, jamais! Era preciso ser racional, ter foco. Depois das desilusões, tudo passa a ser uma escolha. Não é assim que dizem por aí? “Somos responsáveis por nossos atos”.

Vida que segue

Filhos? Estava cada vez mais difícil decidir com quem, e em que momento tê-los. A vida estava passando, mas será que era hora de largar a profissão, assim, e bancar essa aventura sozinha? Os 30 já tinham chegado. E estavam passando. Estava tudo tão diferente… Ah, mas, sim, os filhos vieram. E, com eles, as milhares pessoinhas nas quais eu me dividia. Leite, fralda, febre, futebol, ginástica, nota vermelha, reforço, briga no colégio, preocupações dilacerantes de madrugada. Angústia moral. Teria transmitido valores suficientes a eles?

Mas, e eu???? Era hora de ir à luta! Eu até segui umas dicas que ouvia e lia por aí. Autoestima, vamos lá! Academia, check-up semestral, reencontrar as amigas da faculdade, descobrir novas formas de ter prazer no sexo, cuidar da pele, do cabelo, da mente, yoga, happy hour, espiritualidade, não deixar de ler aquele livro do momento, horrorizar-se diante das tragédias do noticiário, fazer uma pós. Rir com aqueles amigos especiais, responder os recadinhos do Facebook, ser cordial na vizinhança, manter o pensamento positivo. Afinal, havia muito pela frente, a vida sempre pode nos surpreender. Meu coração estava sempre à espera de uma nova paixão, um novo descompasso. Não que eu não tivesse encontrado parceiros bacanas. Claro que sim. Mas a gente sempre quer mais, né? Nenhum setor da vida poderia ser esquecido. E, claro, era preciso buscar ser autêntica em meio a tudo isso. Ser eu mesma, sabe? Não, não sei, não. Na verdade, eu não sabia mais de nada.

Observando tudo em retrospectiva

A esta altura, olhando fotos e consultando minha história, dei-me conta de que eu tinha feito boas coisas, tinha conquistado pessoas, lugares, projetos. Tinha amado, sido amada. Traído e sido traída. Eduquei meus filhos da melhor maneira possível (sempre tinha dúvidas sobre isso, mas acabava por me convencer de que tinha feito o melhor). Mais do que nunca, admirava minha mãe, por tudo o que ela tinha feito por mim. Tinha a impressão de ter deixado marcas positivas na vida de algumas pessoas, tive minhas lágrimas (minha cota de drama na vida), conheci o exterior, não colecionei inimigos. Mas por quê, então, eu me sentia vazia? Por que, então, eu daria tudo para ter uma história nova, uma chance de começar tudo de novo?

Porque… porque a vida é a única coisa que temos. É o que nos faz ser João, Clara, Beatriz, Lúcio, Ana… É a vida que constrói a gente, enquanto a gente acha que está construindo a vida. Naquele momento, na cama, agradeci pela vida. Não sei bem a que santo, só sei que cantei, grata. Eu era de novo uma menina. “Tempo, tempo, tempo, tempo… és um dos deuses mais lindos”. Celebremos, com a gratidão, a vida e o tempo!

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco

Clarissa De Franco é psicóloga, com Doutorado em Ciência das religiões e Pós-Doutorado em Estudos de Gênero. Atua com Direitos Humanos, Gênero e Religião, além de ser terapeuta, taróloga, astróloga e analista de sonhos.

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